sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Conclusão

Vou tentar fechar olhos e tentar redescobrir a nuances e os comportamentos de um passado que parece intangível, pouco palpável, embora temporariamente não tão distante. Recordo-me muito bem do quanto eu me envolvia com as palavras e fazia delas a transformação e a evidência de meus sentimentos mais subreptícios, arrimados sob a contestação do óbvio e da erudição eventualmente forçada. Confesso que não sinto tanta saudade desses dias, porque hoje a felicidade desaba sobre os meus olhos e meu rosto retina a leveza de minha alma e do meu coração, contudo, como já diria o poeta, para se fazer um samba, tem que ter um pouco de tristeza, e mesmo, num turbilhão de alvíssaras, sinto uma necessidade quase que permanente de deitar-me no chão, cerrar o mundo, embebedar-me de suor, em uma cálida e árida tarde dos sertões, daí sentir o nada e a solitude desejada, no sombrio do cômodo, da mobília lúgubre.
Parece que, apesar de toda essa combustão de sorrisos e afetos, mais vale o sabor desse momento tão peculiar e que pensava eu ser tão longínquo na memória e no tato. (É sofreguidão viver sob apanágio dessa sensibilidade mutante que nem os deuses controlariam). O jeito é mudar as formas, colorir o contexto e saber que continuo sendo a nuance perdida como meus reles amigos e companheiros ressaltavam sempre. Concluo, pois.

Sousa, 01 de Novembro de 2013


L.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Uma cidade cheia de espíritos é a minha

Uma cidade cheia de espíritos é a minha cidade. Mas, ainda assim, devo lembrar de que quem não tem raízes, o vento leva. E tendo Hesse dito que há gente que são folhas arrancadas, e outras que são tão perenes quanto os planetas que rondam o sol, seguindo sempre sua órbita e rotação, sem que qualquer evento as tire de sua rota, esta lição não me serviu.

Sou como uma folha arrancada, mas também as folhas arrancadas não têm raízes? O grande paradigma é que elas caem e se esvaem ao sabor dos ventos e das brisas. No meu caso, de uma brisa atlântica. É a brisa atlântica que agora faz meu rumo, e me dá medo que me leve à África, de tão solta que estou.

Não obstante, fazem-me falta aquelas tardes quentes, de calor tão lânguido que chegava a arrefecer o coração. Mamãe dizia que devíamos sair alinhados, mesmo que o linho nos aquecesse mais do que outras vestimentas leves e mais apropriadas para o semiárido. Sair em linho era sair arrumado, e era deste modo que nos vestiam para os crepúsculos, na praça do Cristo.

Afeiçoei-me às praças, como me afeiçoei a Charles de Gaule em Antibes, e quis encher Sousa de chafarizes, na esperança ingênua de transformá-la em uma cidade mais úmida. Os arfantes e pueris desejos de uma adolescente que, embora num país distante, sentia falta mesmo era de seu amplo terraço de piso vermelho numa casa chamada Casa Grande.

Quando eu ainda era bem pequena, naqueles tempos amorfos, onde tudo que podemos lembrar não são senão sensações e imagens retalhadas, poucas memórias me vêm tão vivas quanto os finais de tarde de calor abafado na praça do Cristo em Sousa.
Como disse, tenho muito apreço por praças. Nos meus primeiros anos, tudo quanto eu fazia era me alinhar para, junto com meu irmão Lafa, sairmos às praças, subir as escadas do coreto na Matriz, admirar a estátua de vovô José e a árvore plantada por Lella e Zé Neto no Bom Jesus, sentar nos bancos da André Gadelha até a noite cair, e esperar, ansiosamente, pelos pasteis quentinhos das querubinas, que sairiam, pontualmente, às seis da tarde.

Na BomBolado, meu desejo era sempre o de uma recheada banana Split, mas nunca podia - apenas uma bola de morango: você não consegue comer sorvete tão grande, diziam-me. E fiquei com sonhos de banana Split até hoje, como se não pudesse nunca me deliciar com as sobremesas dos cartazes.

 Um dia, fui agraciada com esse direito, e, com grande desapontamento, na tenra idade de quatro anos, vi que os cartazes nos dizem mais mentiras que os homens que nos beijam com olhares apaixonados, mas cheios de sentimentos vis.

Morei em Sousa até a idade de cinco. Mas minha festa da padroeira continua sendo a Festa de Setembro. Fui à Festa das Neves em alguns cincos de agosto, aqui em João Pessoa, e acho que em nada se parece com uma verdadeira quermesse.

Roda gigante só tem sentido se eu puder ficar frente a frente, com a torre da Matriz. Fitamo-nos sempre com tanta cumplicidade, como velhas amigas, que até quando ela caiu, eu senti que ainda estava lá, porque é assim que acontece com aqueles com quem dividimos nossas vidas: longe dos olhos, mas sempre perto do coração.

Viajei para Sousa tantas vezes que, no fim das contas, sinto que a minha casa é a BR 230 ou, melhor, a rodovia Antônio Mariz. E, indo para a cidade Sorriso de carro, tão sozinha, nas sinuosas curvas da estrada da viração, penso que estou sorrindo para quem pode olhar do céu, já que o antigo governador que deu nome ao caminho, dizia que, quando em seus voos, ou discursando do alto de um palanque, sob a luz das gambiarras que parecem acender aplausos, pensava que Sousa lhe sorria.

É um vale sorridente, pois sim. De ruas largas, mas feitas de paralelepípedos. E o cheiro mais aprazível do mundo inteiro é o dos paralelepípedos noturnos, molhados da chuva forte que cai por sorte na semana santa, ou por destino, no mês de janeiro. E as gramas dos jardins se enchem de sapos, e as pequenas meninas, pensarão como eu pensei um dia, sempre em príncipes que um dia lhes namorarão naqueles gramados.

Do sertão fui retirante, mas não da seca. O bicudo que travou os imensos campos de algodão e trouxe meus pais ao litoral. Uma usina desfalecida, um apartamento pequeno no 777 da Edison Ramalho. E João Pessoa descortinou-se para mim como uma imensa metrópole, cheia de luzes que até então eu nunca tinha visto.

Minhas luzes eram os vagalumes que perseguíamos no quintal da Casa Grande, e - perdoem-me o bucolismo de uma alma saudosa - as das estrelas de tempos imemoriais, que eu via da rede do Terraço de Piso Vermelho, enquanto minha mãe me balançava impaciente, porque nenhum menear de rede, cantiga de ninar ou colo de quem nos ama tanto era capaz de me fazer dormir.

Eu só dormia com a voz de barítono do meu avô e o teclado de vovó, entoando ao longe aquele “negue, o seu amor e o seu carinho...”, ou com o saxofone de Tio Nias, cheio de baladas de um jazz que nem ele próprio sabia decifrar. O Mal de Alzheimer tomou o som destes preciosos homens, e me deixou insone até esses tempos modernos, quando nem mesmo uma velha radiola consegue embalar meu sono.

No lugar de vagalumes, passei a caçar tatuís e caranguejos na praia de Camboinha. Os tatuís são bichinhos fugidios que  escorregam das nossas mãos, ao tempo em que as ondas se afastam da areia. Já as conchas são seres mais mansos. Parecem ansiosas para servirem de colares. E assim é que esfolávamos suas pontas, até fazerem um buraco na ponta, para transpassarmos por ela um barbante e pendurarmos orgulhosos em nossos pescoços, como verdadeiros catadores de conchas, de tão frustrados que estávamos com os tatuís.

Mas a grande frustração era a ausência de praças, que nenhum sargaço, por mais suculento que se mostrasse, poderia suprir. A praça do Bom Jesus, animada as seis da manhã pela música sacra que fazia tocar padre Dagmar. E, quando ele morreu, achei que tinha morrido todo o sentimento da Igreja, e nem mais me dava medo o Jesus Morto feito de cera, preso num caixão nos fundos da sacristia.

Eu acreditava de verdade que aquele Jesus Morto era o próprio Jesus, e, por isso, a minha cidade era a mais importante do mundo, porque conservava o corpo do Cristo incólume nos fundos de uma paróquia de arquitetura dos anos 1970. Uma Igreja que antes se assemelhava a uma repartição pública, e que depois me deu a compreensão de que o Jesus Morto era o único finado que ali ficaria, já que meus pais foram velados naquele altar e, muito cedo, antes do que eu queria e esperava, naquele dito momento de louvor, levados para um cemitério próximo.

Uma cidade cheia de espíritos vivos, também. Embora a noite seja tranquila, do meu terraço de piso vermelho, o vento que vem do Aracati me permite pensar que comungam junto comigo o litoral e o sertão. Sinto em seu cheiro, mesmo que distante, os sinceros desejos de Iemanjá. Ela diz ”venha comigo”, e eu peço, “deixe-me ficar”. Sento as cadeiras de balanço na calçada, mais serena do que atormentada por essas aparentes antinomias. Balanço-me como quem tem sono, bocejo como quem vou dormir, mas a Aurora vem de assalto, como a princesa do conto que despertou depois de cem anos, sem ter envelhecido nada, sequer.

É assim a minha cidade. Que faz mais um ano no Frei Damião, na Guanabara, na Várzea da Cruz, no Alto do Cruzeiro e em tantos outros bairros onde presenciei comícios que sempre me aconchegaram com a certeza singela de que não há luzes mais bonitas que as de vagalumes e gambiarras mal dispostas.

Um dia, amanheci cedo no Angelim, em rondas de campanha, vigiando aqueles que compram votos. Vi o sol nascer de longe, emergindo, como para iluminar o Cristo Morto, inerte, na Igreja do Bom Jesus Eucarístico. Mas não era o Cristo morto o seu desígnio, mas antes o Cristo erguido na praça dos meus alinhos. O Cristo alto, austero, misericordioso, como deve ser. O Cristo do milagre da hóstia.

Caminhei até lá intrigada. Vi algumas velas se apagando com o amanhecer. Aqueles pedidos tão queridos. E, em vez de pedir por mim, pedi por cada desejo aceso na noite anterior, em cada uma daquelas velas. Vagalumes, estrelas, luzes de edifícios, não importa. São luzes da cidade acesa que duram para muito além da alvorada.

O 10 de julho me tomou de assalto, atraiu lembranças, machucou o coração apertado de quem não pode beijar de perto o aniversariante que tanto lhe deu amor. Vivo na capital, aprendo no Leão do Norte, visito a Borborema com carinho. Mas ser do sertão é talvez a tola esperança de nos acharmos tão fortes quanto uma cidade árida, submersa num vale que sorri. E isso sempre nos valeu.
 
M.

domingo, 23 de junho de 2013

Para meu tio Hellosman


Quando minha tia Andrea casou com meu tio Hellosman, ela certamente não sabia que, dentro de muitos anos, estaria me dando um grande presente. Isso acontece com muita frequência, de as pessoas que amamos trazerem para nós outras pessoas, para que amemos e sejamos amados. Apesar de tio Hellosman ser extremamente sistemático, metódico e organizado, ou seja, o oposto da minha personalidade, nós sempre nos demos muito bem.

Acho que, no fim das contas, é bom ver e admirar no outro um pouco daquilo que a gente não tem.  Eu o admiro bastante e, no melhor dos sentidos, invejo sua capacidade de ser pontual e preciso em tudo que faz. Mas o que gosto mais nele, é o fato de ele me compreender nas minhas mais profundas minúcias e, ao passo em que eu contemplo seu grande aparelhamento para resolver dez mil questões em claros e luzidios quinze minutos, acredito que ele aprecia minha imensa leveza e estado de espírito, quase sempre de graça.

 Nunca poderíamos mudar de lugar e assumir um as características do outro – nem em outra galáxia – mas é sempre bom, entre uma garrafa de vinho e suas controladas quatro doses, sempre se mantendo alegre, mas sóbrio, trocar ideias sobre os sabores e dissabores dos encontros intensos que a vida proporciona.

Nestes jantares de família, desenvolvemos uma brincadeira divertidíssima: escolher, cada um, qualquer lugar do mundo para onde gostaríamos de ir naquele momento, e descrever como seria a viagem. Eu me decidi pela Rússia, tia Andrea optou por Paris, minha prima Grace preferiu Nova Iorque, meu irmão Lafa, ocasionando uma gargalhada geral, pensou logo em Areia (mas eu mal conheço o brejo paraibano! – justificou – e não é tão menos frio que esses lugares - complementou, aturdindo-nos). Meu tio Hellosman,  parcimonioso em suas sempre tão bem escolhidas palavras, disse-nos que queria visitar Antibes, tal como eu fizera, há cinco anos, pegar um trem para a pequena vila de Eze-sur-mer e descer a ladeira da cidade em um Rolls Royce.

Como dito, embora eu muito duvide que meu tio seja capaz de fazer isso, tal como eu fiz, ele é enlouquecido por essa história. Sempre me pede para conta-la, principalmente na frente de desconhecidos. Contei-a tanto, até introduzindo novos elementos, que, às vezes, perco-me no que de fato aconteceu e no que fui criando para incrementar o conto, já que, como sempre me pus em dúvida se o ocorrido foi assim tão realmente fantástico quanto o crê meu tio, dá-me medo de não surpreender tanto os novos ouvintes.

Última justificativa deste longo prólogo, considerando-se o objeto da prosa, que será até mais curto: meu tio é muito fã de meus escritos. Há alguns anos já vem pedindo para eu escrever sobre o rolls royce descendo a ladeira de Eze-sur-mer. Por amor, então, eis o relato.

Aos dezessete anos, ganhei de presente uma viagem de intercâmbio. Na agência de viagens, apresentaram-me um sem número de opções nos Estados Unidos e Inglaterra, para que eu aprimorasse meu inglês. No fim da lista, havia uma alternativa pouco levada em conta: a Riviera francesa.

Meu francês era ainda raso, à época, o que me levou a pensar que quatro meses na Côte d’Azur não fariam muita diferença. Era melhor continuar na Aliança e, até atingir um nível mais avançado, fazer esse passeio. No almoço de domingo costumeiro, meu tio deu o voto de divergência: melhor a França. Nesses meses, você vai voltar falando francês melhor do que Carla Bruni. Se não, o charme que sessenta dias em Antibes vão lhe dar não valem o vocabulário em inglês desse escasso tempo.

Não titubeei mais. Comprei um dicionário, alguns livros e a passagem de avião. Aportei no aeroporto de Nice em um dia bastante chuvoso, mas, mesmo assim, pareceu-me o aeroporto mais lindo do mundo. Um gentil alemão veio me buscar: era estudante do Centre International d’Antibes e funcionário. Pagava o curso com esses pequenos serviços. Falou-me que Nice era bem próxima de Antibes e que, depois, eu poderia pegar um trem para conhecer melhor a cidade.

Cheguei à escola, onde, para minha felicidade, depois de um pequeno teste, fui inserida em uma classe para alunos de nível intermediário. Chegando à residência, outra grande alegria: meu quarto tinha uma sacada de onde se avistava o mar azul turquesa e os aviões que não paravam de nos sobrevoar, devido ao intenso fluxo de veraneio nas paragens.  Esse terraço me rendeu algumas das melhores noites da minha vida, regadas a vinho de três euros, imensas baguetes, rodelas de tomate e vários vidros de azeite – motivo dos cinco quilos a mais no retorno.

Além disso, a área comum contava com um bar excepcional. Não que ele tivesse nada de outro mundo: sequer serviam petiscos. Mas um chope gigantesco custava o módico preço de um euro e a música era escolhida por nós. Sessões de gaitas escocesas, folclores alemães e muito Bob Dylan faziam parte da trilha sonora.

No calor lânguido da Riviera, rodeada por uma diversidade de pessoas e histórias agradáveis, jantares às oito da noite ainda admirando o por do sol,  permissivos de longas esticadas nas praias, bronzeando-me, comendo amendoins e lendo romances de Fitzgerald, transcorreram quase quatro meses, para o meu pesar, bastante ligeiros.

Com vestidos soltos, claros e leves de passeio, eu me sentia uma verdadeira artista, sentada em cafés e fazendo anotações sobre os transeuntes, iniciando meu custoso vício pelo tabaco (os cigarros oneraram em muito minha viagem) e por deliciosos sorvetes italianos.

Havia os pequenos passeios para as cidades próximas. Minhas amigas queriam visitar as mais famosas, como Cannes, ou circular demoradamente e repetidas vezes por Nice. Tive que fazer sozinha um roteiro, já antes escolhido, pelos pequenos vilarejos para pouco antes da fronteira italiana. Um deles era a pequenina Eze-sur-mer. Ninguém se interessou pela ideia. O lugar ficava no alto de uma encosta, tinha apenas uma igreja antiga, ruas estreitas e a vista mais bonita de toda a Costa, na minha opinião.

Tomei um trem que chegava até um ponto onde se pegava um ônibus. Esperei cerca de uma hora na parada, ao lado de dezenas de turistas ingleses velhinhos. Durante o caminho, numa ladeira sinuosa, com mais curvas que o corpo da princesa de Mônaco, tranquei-me em minha própria mente, absorta diante da paisagem estonteante. Claro, mas muito claro, sobretudo para aqueles que me conhecem, que não prestei atenção em nenhum dos avisos que o motorista deu quando nos deixou, dos quais só tomei ciência várias horas depois: só havia um ônibus que saía da cidade, em apenas um horário, pontualmente, às seis da tarde.

Fiquei deliciada: lá em cima, o ar era mais frio, a vista mais bonita e eu estava, finalmente, sozinha – não aguentava tagarelices por muito tempo, ainda que gostasse muito de estar na residência com meus amigos. Acendi um Marlboro light e saí sem destino pelas ruas inclinadas, estreitas e cheias de ladeiras. Vi a igreja velha, fiz algumas orações, sentei no banquinho da praça na frente, embaixo de uma gigantesca árvore de não sei o que, que me fez sombra até eu me cansar dos meus próprios pensamentos. Desci para a cidade baixa, consultando restaurante por restaurante, mas, como ainda eram cinco horas, nenhum estava aberto “ni même pour un petit vers de vin”.

Chateada, é que me sentei num bar que mais parecia um boteco da Lapa, pedi  uma cerveja, alguns amendoins e uns vários guardanapos, já que meu caderno de notas estava completamente cheio. Pus-me a ensaiar rabiscos e a escrever, sem contar quantos copos já havia entornado.

A noite caiu, uma enorme lua cheia e amarela parecia sair de dentro da encosta e eu não podia estar mais saciada. Era o melhor cenário para uma pseudoartista, que, ante a ausência de seriedade inerente aos 17 anos de todos nós, como bem ensinou Rimbaud, fazia-me sentir a maior das artistas. Ali era um pedaço da minha vida que eu jamais esqueceria, sobretudo quando estivesse recebendo o nobel da literatura.

A sozinhez de uma moça charmosa, embriagada e escrevente é um atrativo maravilhoso. De repente e não mais que de repente, o resto não era o silêncio: minha mesa agora eram quatro, onde se sentaram um casal de turistas americanos, um grupo de jovens , também pretensos artistas  franceses, um sedutor italiano de meia idade e uma senhorita alta, magra, desbocada e cheia de ideias socialistas.

Era um filme de Woody Allen. Desenhei e fui desenhada. Escrevemos poesias em conjunto, recitei alguns versos de Vinícius e inventei folclores brasileiros: mas como vocês não sabiam que, no Brasil, antes do Natal, é costume caçar coelhos e servi-los no lugar do peru? Ninguém lhes contou que os índios ainda comem bispos portugueses, surpreendendo-os quando das visitas nas arquidioceses locais? Bem, é um resquício da catequização, sabem?

O dono do bar emprestou um violão e, se alguém soubesse, a internacional socialista teria sido cantada. No lugar, entoamos algumas canções dos Beatles e eu tentei, sem sucesso, puxar um coro de Belchior.

A noite caiu, a lua subiu mais alta, o sono chegou de assalto. Os artistas franceses propuseram dar continuidade à festa, mas, com o pouco de razão que ainda me assistia, lembrei-me que, se voltasse depois de duas da manhã, talvez encontrasse a residência fechada. Despreocupada, informei, para a tristeza de todos (longos “ahs” e sinceros suspiros me foram dispensados), que precisava pegar o ônibus de volta. E ainda havia a viagem de trem. Trocaram olhares furtivos, e logo fui informada que só havia ônibus no dia seguinte. E para descer? “Ninguém desce depois da meia noite, mademoiselle”. Estava sitiada. Mas eu preciso voltar. Ofereceram-me a opção de pernoitar na casa de alguns deles, o que, também assistida pelo fim de juízo que ainda tinha, rejeitei, educadamente. Um hotel, haveria? Lotado. Taxi? O único taxista da cidade estava tão ébrio quanto eu.

Bem, pode-se sempre chamar o Loic. Mas o tal de Loic parecia uma alternativa complicada. Loic servia de chofer para turistas ricos, tinha um rolls royce antigo e não cobrava barato. Mas, que fazer, era minha única saída, literalmente. Eu voltaria para o Brasil dentro de poucos dias e, como havia economizado meu dinheiro, gastando-o, basicamente, com álcool e cigarros, podia me dar ao luxo de descer a ladeira em um rolls royce.

Assim, ligaram para Loic, que chegou em seu belíssimo automóvel, fardado, como deve ser, já abrindo a porta para mim como se eu fosse descendente da casa de Orleans e Bragança. Despedi-me de todos alegremente, com cumprimentos de realeza, cheia de endereços na mochila, com promessas de cartões postais jamais cumpridas. Entrei no rolls royce no estilo de uma grande dama, imaginando se Grace Kelly já teria vivenciado instante tão sublime.

Loic era reservado, mas eu ainda estava falante. Abri os vidros do carro e sentei-me na janela como costumo fazer nas carreatas em Sousa. Fui, instantaneamente, proibida, pela suntuosidade do carro e sinuosidade da ladeira. Mas é claro que a mademoiselle não queria se acidentar, correto? Dizendo isso, meu chofer abriu o teto solar, e,  no segundo subsequente, minha silhueta emergiu do capô, de braços abertos para abraçar, ao mesmo tempo, o mar espelhado, a lua enorme e amarela e os invariáveis aviões que traziam novos e brilhantes espíritos para iluminar a Riviera.
M.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Do TDAH


Do TDAH

            Hoje eu acordei bastante preocupada com minha capacidade concentração. Há muito não sentia isso. Desde a época do colégio, devo dizer. Durante a faculdade, por eu ter me apaixonado, perdidamente e logo no primeiro ano, por Miguel Reale tanto quanto sempre fui por Tolstoi ou Marília Arnaud, não tive as dificuldades que sofri enquanto estava, sobretudo, no ensino médio.
            Quase mato meus pais de preocupação. Eles não conseguiam compreender como alguém que lia tanto, literatura já avançada para minha idade, que passava os domingos trancada no quarto, rodeada pela Folha de São Paulo e contos de Córtazar, pudesse ter alcançado a façanha de ter ficado em recuperação em todas as matérias, à exceção de história. “Ué, mas você não lê tanto?” – minha mãe perguntava, com um misto de sarcasmo e  repreensão – “Não é tão boa em línguas?”. Isso porque, à época, eu já falava inglês e francês em certo avanço. Sim, eu havia ficado em recuperação em português e inglês, mesmo sendo boa em línguas. Eu conseguia escrever e falar, mas como explicar orações subordinadas e expressões adverbiais?
Não me orgulho disso. Como também não me orgulho de ter passado no segundo ano científico pelo temido conselho de classe, porque os professores tiveram um pouco de misericórdia e talvez um pouco de bom senso (a frustração de uma reprovação para uma adolescente talvez seja pior do que o desconhecimento total da trigonometria e geometria espacial).
Meu primeiro ano do ensino médio, em especial, é que foi, de fato, o período de crise mais grave: tinha insônias torturantes, chegava a ficar três ou quatro dias sem dormir. Levaram-me para passar um mês em Sousa, a título de castigo. Resultado é que eu saía de casa na surdina, fazia rondas à pé pela cidade, jogava baralho com alguns vigias e iniciei meu caminho na sinuca e na cerveja. A noite é perigosa para quem tem só catorze anos, e mais perigosa ainda para quem tem catorze e acha que tem cinquenta
Foi nesse tempo também que comecei a tomar café como quem toma água: apesar de sentir sono durante o dia, não conseguia mesmo dormir. Então me enchia de café para viver o dia como um zumbi. Tinha um amigo especial, Seu Rubismar, que tinha uma loja de CDs. Ficava lá das duas da tarde até à noitinha, ele me mostrando os sons da década de 50, 60, até as novidades dos dias atuais, ele, o primeiro pirateador de cinquenta anos da Paraíba, no meu sentir. Em 2003, 2004, já baixava tudo pela internet.
Um dia, Seu Rubismar encontrou papai e contou-lhe de nossa amizade. Meu pai ficou feliz e surpreso. Disse-lhe que eu era muito inquieta. Seu Rubismar tomou aquilo com espanto: inquieta? Ela passa a tarde inteira sentada, tomando café e ouvindo música.
Daí surgiu, mais uma vez, a ideia de que meu problema não era de concentração ou inquietude, mas pura preguiça. Mamãe voltou a me ralhar: você vai ficar igual aos Pordeus, lendo, ouvindo música e tomando café sem parar. Os Pordeus são a família do meu avô, do pai da minha mãe, que têm uma veia artística muito desejada por mim, não inscrita nos meus genes, infelizmente.
O grande paradigma a ser enfrentado era como eu conseguia me concentrar tanto em algumas atividades, até demais, ao ponto de conseguir terminar um longo romance em um final de semana, aprender francês em um ano, ao passo em que era incapaz de passar quinze minutos resolvendo questões de física, matemática ou até mesmo – pasmem - estudando geografia.
Para mamãe, como disse, era simplesmente preguiça e capricho. Eu só fazia o que tinha vontade e ponto final. Papai era um pouco mais compreensivo, porque achava que eu não podia ser um fracasso total na vida já que conseguia pelo menos ler. Falava, por vezes, brincando, quando mamãe explodia comigo: ela pode ser crítica literária, né? Ou de cinema!            
Nada disso era bom para mim. Apesar de muita gente me admirar e me achar bacana, eu sofria muito por não ter um desempenho no mínimo regular no colégio. Por não ter ideia de como passaria em um vestibular, faria faculdade, por não saber em que profissão me encaixaria.
Fora a concentração, havia outros problemas. Desorganização extrema (não adiantava arrumar o quarto pela manhã, à noite ele já estaria, novamente, um caos), paixão por aventuras (pegar carona com desconhecidos, inclusive em países estrangeiros, como bem me lembrou minha prima Carol, recentemente, alugar teatros fingindo ser uma adulta, pedir motos emprestadas e sair desembestada pela cidade), total inépcia para a pontualidade, sobretudo em razão dos meus horários pouco convencionais.
Assim, eu carreguei durante minha adolescência inteira um sentimento de insuficiência e incompetência extremos, que me conduziram a uma baixa autoestima, e à sensação suprema de incapacidade. Não raro, ficava apática e muito, muito melancólica.
Um dia, estávamos numa livraria, eu e mamãe e vimos um livro chamado “Mentes Inquietas”, da mesma autora de “Mentes Perigosas”, que fez sucesso recentemente, Ana Beatriz Barbosa. Acho que o livro acabara de ser lançado. Mamãe nem leu a sinopse no verso. Pronto, é isso aqui que você é, uma mente inquieta, ela sentenciou. Eu li o livro primeiro, de assalto. Caladinha, mandei que ela lesse.
Descobrimos que existia uma doença, sim, doença, chamada Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, e que, pior, eu me encaixava perfeitamente na descrição dos “sintomas” da doença. Naquele tempo, o termo mais usado era DDA – Distúrbio do Déficit de Atenção, sendo a hiperatividade um aspecto da doença, sendo esse aspecto o que menos me aproveitava. Eu não era de um todo serelepe, traquina, de subir em árvores. Mas roubava motos, carros (aprendi a dirigir aos doze anos) e não conseguia dormir.
Não foi a solução de todos os problemas, não. Ao contrário. A preguiça tinha conserto, correto? Mas e uma doença? Um transtorno mental? Acho que mamãe se aperreou mais ainda, para ser sincera, porque continuou dizendo que eu tinha mesmo era síndrome de Macunaíma. Foi minha irmã mais velha, que já era médica residente, que pensou que aquilo tudo podia ter algum sentido, sim, e convenceu meus pais a me levarem a um psiquiatra no Recife.
Para uma adolescente já cheia de conflitos, a ideia de precisar ir a um psiquiatra não foi das mais confortáveis. Além de incapaz e inapta, senti-me muitíssimo frágil. Na primeira consulta, o médico disse sem rodeios que eu tinha, sim, o tal Distúrbio de Atenção.
Mamãe não se conformou. Queria uma tomografia ou algo similar que provasse isso. Insistiu na teoria da preguiça. Disse da minha paixão por literatura, música e cinema. O médico, gentilmente, perguntou-lhe mais uma vez se ela tinha lido o livro que havia nos levado ali, e se ela se recordava de um tópico que falava do hiperfoco.
Ela continuava relatando como eu passava quatro ou cinco horas lendo, “só lendo, doutor! Vê três ou quatro filmes em sequência! Como essa menina tem problema de atenção?”. Pois bem. O doutor informou que preferia não chamar exatamente de um problema de atenção, mas de um desvio. Que minha atenção era extremamente, mas de uma forma muito extrema mesmo, direcionada para os assuntos pelos quais eu sentia mais interesse. Que o fato de eu ser espacialmente desorganizada se dava também por eu devanear demais.
Claro que mamãe não engoliu essa conversa. Até eu, até hoje, e depois vou explicar melhor, fico um tanto quanto reticente em relação a essa tese. No dia mesmo fiquei. Porque, ora, se eu só conseguia atentar para o que gostava é porque tinha preguiça do resto das coisas e fazia tão somente o que desejava. Ou seja, caprichosa e preguiçosa, mesmo. Mas, segundo o psiquiatra, não era uma escolha minha. As pessoas “normais” conseguiam direcionar a atenção, os portadores (e imaginem que susto é ouvir essa palavra) de TDAH simplesmente não conseguem.
Mas havia um remédio, sim, e não era só o café – pois não é que até meu vício pela cafeína restou explicado? Era uma droga chamada Ritalina, e eu tinha que começar a tomá-la imediatamente. No mesmo dia compramos, no dia seguinte comecei a tomar. Os efeitos foram devastadores, para mim. Perdi alguns quilos e consegui me focar em quase tudo e, uma novidade, em biologia, porque fiquei admirada com aquilo que o doutor explicou serem os responsáveis pelo meu mal: os neurotransmissores. Não eles em si, mas a deficiência de um em específico, a dopamina. Até hoje não sei como funciona, mas, ao que parece, a ritalina regula os níveis de dopamina no cérebro.
Para o espanto e maravilha de todos, tirei vários dez em biologia e até um em matemática, seguidos de um nove em física. Por outro lado, fiquei muito calada e abatida. Hoje não sei realmente se foi a ritalina que me deixou assim. Talvez a ideia de ter uma doença, de precisar de um remédio, de ser tão jovem e me perturbar tanto tenham sido fatores mais fortes para gerar em mim um aspecto sorumbático, ao ponto de o professor de física dizer que gostava mais de mim quando eu tirava cinco e conversava mais. Entretanto, no auge dos meus complicados catorze anos, a explicação mais plausível é de que tinha sido a droga, sim.
Então, tomei uma decisão bastante séria: parei de tomar a ritalina sem dizer a ninguém. Meus pais continuaram comprando o medicamento por mais uns dois anos, sem sequer saber que eu só o tomei por alguns meses, oito ou nove no máximo. Às vezes eu fazia a revenda para uns CDFs que queriam se concentrar ainda mais. Outras vezes só jogava no lixo, mesmo.
Aos dezessete anos, agarrei-me à tese de mamãe: eu era preguiçosa e tinha que corrigir isso. Não precisava de um medicamento. Pensei que essa história de TDAH era balela para alimentar a indústria farmacêutica. Veio a faculdade e, como disse, meu hiperfoco foi bem vantajoso, já que podia estudar por horas a fio Direito Constitucional e Processual Civil. Não tive a mesma sorte com o Direito das Coisas. Até hoje tenho sequelas de tanto repassar páginas falando sobre o direito de sequela.
A maturidade diminuiu alguns arroubos. E assim fui me ajustando. Outro dia, li um tuíte de Ana Beatriz Barbosa, que também tem TDAH, dizendo: “perguntaram-me se eu tive TDAH. Eu não tive, eu tenho. Só aprendi a viver com ele”. Pesquisei sobre TDAH na vida adulta e aí vi que continuo me encaixando direitinho na descrição dos portadores. Não quero dissertar sobre isso, já adentrei demais na minha vida pessoal. Entretanto, li um interessante dado: apenas um percentual de 30 a 50% das crianças com TDAH continuam a sofrer do mal na vida adulta. Desconfio muito disso. Como disse Ana Beatriz, a gente aprende a viver com a desatenção, com a desorganização e vai ajustando nossa vida para que esses aspectos não nos prejudiquem tanto. Alguns conseguem fazer com um grau menor de maestria e, por isso, são inseridos no percentual acima mencionado.
Então, se esse ajuste é possível, a doença existe? Bem, hoje, como mamãe, eu queria muito que uma tomografia me provasse. Não sei se os Pet-scans fazem isso, mas, enfim, parece que ainda temos que confiar na subjetividade psiquiátrica que, cá para nós, não é das mais confiáveis, e não sinto vergonha em dizer que falo por experiência própria. Claro que mamãe não me levou só em um psiquiatra. E, depois, mais tarde, quando ela já tinha falecido, visitei alguns, mais por tristeza do que por desatenção. Encontrei muitos irresponsáveis e recebi diagnósticos bastante confusos. Por isso, prefiro resolver meus dilemas com a psicanálise, que é subjetiva, mas não inventa de medicar e, pelo menos não na minha vivência, também não rotula.
Já com 21 anos, descobri que um dos papas do TDAH no Brasil, o Dr. Salomão Schuartzman, estava em João Pessoa, para uma conferência sobre autismo organizada pela minha tia. Depois de muita persistência, consegui uma consulta com ele (até porque também queria um autógrafo do seu livro, que tinha desde os catorze anos). É um senhor muito sereno, que me ouviu atentamente e confirmou, sim, o meu diagnóstico de déficit de atenção. Eu posso não tomar a ritalina?, perguntei. Era o meu maior medo, dada a malfadada experimentação adolescente. Pode, ele me respondeu tranquilo. Só vai ser mais difícil, mas também acho que você já sabe como é.
Não sou contra fármacos para a mente. Acho que falta de dopamina é o mesmo que falta insulina, e não podemos nos furtar a toma-la. Todavia, como os efeitos da ausência da substância são diversos numa e noutra enfermidade, ainda posso me dar ao luxo de arriscar os meus métodos e minha capacidade de transformação.
Passei muito tempo achando que o cérebro era algo estanque, que éramos determinados pelo oráculo genético de Steven Pinker, sem alternativas. Hoje, penso que, embora dentro desse oráculo genético, há algumas opções. Pode ser pueril. Minha irmã mais velha ainda insiste para que eu tome a ritalina, mas minha resistência a ela foi profunda, porque afetou um lado da minha personalidade do qual eu sempre gostei muito: minha espontaneidade, extroversão. E perder isso novamente, ainda que por alguns meses, não me é compensado por conseguir ler algumas páginas a mais. Pelo menos por enquanto.
Algo, todavia, há de ser advertido, para pais e adolescentes: o TDAH existe, não é uma invenção da indústria farmacêutica, nem uma desculpa para não estudar. Mas vejo uma profusão do TDAH sem limites. Observo que alguns pais parecem querer se furtar da responsabilidade de compreender porque seus filhos não estão bem na escola, e aí empurram ritalina ou concerta (que já foi, inclusive, taxado de a droga da obediência) goela abaixo. Não é uma simples desatenção que caracteriza o transtorno, e a irresponsabilidade de alguns pais e médicos ao aceitar e fazer o diagnóstico de forma precoce, respectivamente, pode ser extremamente maléfica para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Já outros pais, como os meus, por exemplo, podem ter uma atitude relutante no que tange à aceitação do diagnóstico, e isso também pode ser prejudicial. Vale lembrar que não é só a droga e, principalmente, ela, isoladamente, que ajuda a combater os efeitos do transtorno. A terapia é uma excelente medida, no meu caso, em particular, a melhor. Essa relutância pode acarretar, como acarretou para mim, em baixa autoestima, sensação de angústia e impotência. Até hoje, sinto minha confiança assaz abalada, principalmente no campo profissional.
Na faculdade, um professor veio me contar que seu filho de oito anos tinha sido diagnosticado com TDAH, sendo a hiperatividade o aspecto mais forte da doença nele. Disse-me que não iria fazer nada, porque não queria mudar a personalidade do filho. Apesar do baixo rendimento escolar, achava-o perspicaz e inteligente. Essa visão é interessante, mas também pode ser maléfica. A droga pode até ser descartada, mas o alarme do diagnóstico não pode ser sumariamente rejeitado. Muitas vezes, só a consciência do problema é suficiente para que se façam arranjos no cotidiano da pessoa e, assim, ajustá-la para o justo cumprimento das suas responsabilidades.
Só quem tem TDAH de verdade e sofre com isso sabe que não é um alento ouvir que TDAH é o mal dos gênios.
Conheço adultos mais velhos que eu que até hoje têm sérios problemas profissionais, pessoas com alto grau de inteligência, mas que não conseguem utilizá-la, não raro por problemas sérios de confiança, por terem sido taxados de preguiçosos e burros na infância. Comentários desta ordem podem não vir dos pais, como no caso do meu professor, mas de professores e colegas de classe.
Tive que fazer muitos e muitos ajustes na minha vida e ainda sofro com os problemas advindos do TDAH. Tenho insônias recorrentes e embora não deixe de cumprir prazos, muito frequentemente deixo as atividades para o último momento, mas tento me disciplinar. Meu cuidado é redobrado. Um esforço diário.
Se TDAH é simplesmente jeito de ser, modelo de personalidade, a cada dia eu acredito mais que não. Entretanto, se um modelo de personalidade contém aspectos que prejudicam de forma maior no nosso cotidiano, é imperioso seja feito um controle diuturno, aplicando-se doses diárias de ordem e obediência em nós mesmos.
Sei que muita gente acha besteira isso de transtorno mental. Tudo o que posso dizer é através de minha vivência, o que aprendi com o meu próprio sofrimento. E é um grande sofrimento não ter controle sobre si mesmo, ainda mais em um mundo tão cheio de overachievers. Invejo essa gente de disciplina militar, que acorda cedo, corre na praia, estuda, é bem sucedida e bronzeada sem risco de câncer de pele. Eu esqueço constantemente o filtro solar, até quando vou à praia (ainda bem que vou pouco) nesta era em que “use filtro solar” virou bordão.
Ainda passo por poucas e boas, porque, quando não consigo me concentrar, saio do Alto Branco e vou bater em Massaranduba. Porque tenho medo de fazer provas, arrisco-me pouco onde devo me arriscar e, às vezes, passo dos limites onde os limites devem ser bem estritos. Mas ainda há espaço para essa gente cinéfila, que, mesmo não tendo dom para overachiever, consegue redescobrir toda a alegria e esperança do mundo num longa-metragem de Claude Lelouch.



sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Mais uma de amor ;))))

Lafa, para mim, você sempre será o meu irmão mais novo, o caçula (porque Lilice demorou um tempo pra chegar, né?). Hoje vejo em você um homem feito, não só ciente das responsabilidades que tem, mas comprometido com elas. Devo lhe dizer que há muito tempo eu não era tão feliz. Ver você realizado e apaixonado pela vida me dá uma satisfação infinita. Às vezes me ocorre um medo egoísta de lhe perder para o mundo porque, em que pese eu lhe ter como 'meu irmãozinho', eu sempre fui muito mais imatura, dengosa, cheia de caprichos infantis. E você, mesmo sabendo disso, nunca fez questão de me encher de mimos, tantas vezes tão desnecessários. Das coisas do além eu sei pouco e duvido muito. Só que, não raro, eu sinto que nossa conexão ultrapassa os limites da relação de sangue que o destino nos impôs. Se eu lhe conhecesse hoje e agora, seria, inexoravelmente, uma fiel discípula e me faria de pronto sua melhor amiga. Você é o melhor amigo que alguém pode ter. Sua disciplina me irrita um pouco e eu chego a lhe achar enjoado, como acredito que você também se impacienta com minha imprevisibilidade e toda a labilidade emocional. No fim das contas, eu desejo imensamente a sua resolutividade e decisão, porque minhas certezas se esvaem em uma dose de uísque, enquanto você resta calmo, sereno e tranquilo, como naquela música, uma das primeiras que você aprendeu a tocar no violão. Minhas melhores lembranças são com você. As piores também, mas se você não existisse, elas ficariam menos leves. Como você faz graça eu nunca me canso. Como você continua crescendo, eu não me espanto. Como você ama as pessoas, também não me assusta - essa sua empatia natural com todos os seres humanos só desperta em mim a vontade de ser uma pessoa melhor. Lafa, você é uma pessoa inspiradora. Desde menino tão comportado, estudioso, meticuloso que só parece meu irmão ao som de Beatles, Belchior e Los Hermanos. Ou quando para e olha trocado, sem me deixar saber o que você vê, mas discute comigo tudo o que está além da nossa compreensão. Mas é incrível como quase sempre nos damos por satisfeitos com a ausência de resposta e aí, nesse caso, o conformismo não parece uma coisa tão ruim assim. Nós dois sabemos como esses últimos anos foram difíceis e cruéis. Amadurecer no carbureto e virar adulto da noite pro dia foi bem complicado, mas isso nunca nos tirou a alegria de viver, nem de acreditar que dias melhores viriam. E, de fato, vieram. Ainda me assusta a possibilidade de a tristeza retornar, e esse medo, por vezes, é pior que a própria tristeza. Você bem entende como é ter a sensação de que, a qualquer momento, um evento inesperado nos tome novamente de assalto e encha nossos corações de pesar. Mas, como papai dizia, a vida é sempre lançada à queima roupa e a lição mais preciosa disso tudo é que os leões que temos que engolir a cada dia parecem menos ferozes. Você é meu companheiro de batalhas e até hoje não conheci melhor guerreiro. Tão corajoso, Lafa, tão valente você é. Não cabe em mim o orgulho que sinto dos seus tantos predicados. Só posso repetir Che, bater no peito dizendo que endurecemos e não perdemos nunca a ternura. Que o bom do nosso cotidiano são as brincadeiras que não deixamos de fazer, as piadas, não raro as mesmas (ou do mesmo tom de humor- o nosso!), mas sempre tão engraçada, a leveza. Sinto sua falta todos os dias, mais por isso do que por você ser meu grande herói. Amanhã você começa, oficialmente, a dar contornos concretos àquele plano que fizemos lá no Leblon. Sei que você vai fazer tudo certo, que seus ideais manter-se-ão incólumes e que a revolução virá de passo em passo. Queria muito que papai e mamãe estivessem aqui. Fico imaginando o que ele estaria lhe dizendo, como mamãe estaria contente escolhendo seu paletó. Como eles ririam, embriagados de satisfação, toda vez que lembrassem dos seus 2833 votos. Como eles repetiriam, incessantemente, que não vale o poder apenas pelo poder, que quem não vive pra servir, não serve pra viver. Mas você guardou bem, sei que sua memória não falha. Só para garantir, repita na sua mente mais algumas vezes. Que neste ano nós consigamos ter disciplina para cumprir a dieta dos pontos, que seu violão não descanse nunca, assim como nossa vontade de ajudar a quem mais precisa. Que a sensibilidade não falte nunca, mas que a razão também seja amiga (sobretudo minha), que possamos dar mais atenção aos livros e amigos, e não esquecer nunca de dizer o quanto nos amamos e o quanto somos importantes uns para os outros. Eu amo muito você, Lafa. Um beijo imenso e o abraço mais apertado da sua Naná.


M.