segunda-feira, 3 de março de 2008

Pla pla e as lancheiras

Alguém já disse, sabiamente, que, quando olharmos para um adulto e sentirmos raiva e asco por algum erro ou atitude pouco honrosa que tenha cometido devemos tentar ser condescendentes com aquela pessoa e perdoá-la. O autor do dito não utilizou como argumento a máxima cristã que prega o “não julgueis para não serdes julgados”e “antes de tirares o argueiro do olho do teu irmão repara na palha que há no teu” mas, com simplicidade, sugeriu que nos lembrássemos que aquela pessoa crescida já foi criança um dia e usou lancheira.
É um argumento lúcido e bastante sensível. Permite olhar para o indivíduo em questão mais carinhosamente e, dessa forma, analisar cuidadosamente sua trajetória lembrando que um dia aquele espírito também foi lar de inocência e pureza e que talvez ainda guarde em si algo de sua semente, maculada pela lei da sobrevivência mundana, pelos truques e artifícios que aprendemos, todos nós, ao longo dos anos, antes de sermos divididos pela sociedade entre aqueles estritamente bons e os estritamente ruins.
A dialética nos confunde. A idéia da criança em cada um de nós pode recordar que em um tempo ido fomos obrigados a escolher, o que prova que o ser humano possui trevas e luz dentro de si, mesmo que visivelmente aparentemos carregar somente um lado escuro e opaco, que transborda atos egoístas e avarentos, ou um lado brilhante que nos mostra generosos e altruístas. Aquele que carregou lancheira pode já ter se prestado a dividir a maçã às três da tarde, mesmo que no futuro tenha escolhido guardar para si todas as maçãs que comprou, sem sequer oferecer uma para o semelhante mais necessitado.
Há cinco anos já dirijo livremente pelas ruas da cidade, mesmo sem carteira de motorista. Assim, cuspo na cara do Estado Democrático de Direito, piso no pé da lei, não chego a desafiá-la porque não acredito piamente na severidade de seu poder coercitivo. As justificativas são conhecidas pelos que não mais usam lancheiras. Pro sempre nos mesmos sinais, espero neles pelo temor da morte, não da sanção. Tenho a tristeza de, do conforto do meu banco e do frescor do meu ar condicionado, observar os meninos de rua e, vez por outra, dar-lhes uma pequena esmola. O que para mim não custa nada e para eles é o ópio do dia, como muitos julgam ou, como prefiro acreditar, o pão. Por via de conseqüência, sinto-me boa e iluminada. Nessa ótica, minha compaixão parece burguesa, egoísta e alienada.
Alguns dias atrás, agraciei Plá plá, exímio malabarista já nos seus poucos e raquíticos quinze anos de idade, com habituais dois reais. Minha mente desviou-se um pouco dos meus problemas, tão facilmente resolvíveis com tempo e dinheiro, para o rosto de Plá plá. Ele havia crescido. Embora continuasse pequeno para sua idade, seu semblante parecia muito mais adulto, muito mais sofrido, muito menos inocente. Plá plá me parecia cansado. Claro, deveria ter estado em outras vezes em que passei por ali, porém não fui sagaz ou atenciosa o suficiente para notar.
Conversei com ele algumas vezes. Nunca foi a escola, está na rua há mais de dez anos. Sua maior habilidade é pedir. Foi tudo que desenvolveu na vida e, para ele, esta aptidão tem muito mais profundidade do que nossa passagem corrida permite perceber. É toda a sua história. Ele cheira cola pra passar a fome. Às vezes ele dorme na calçada. Todos conhecemos alguém como Plá plá. É possível até que muitos que vivam em João Pessoa conheçam o próprio Plá plá. E é aí onde está o ponto crucial da crônica. Se Plá plá está na rua, no mesmo sinal há tanto tempo, de maneira que conhecemos toda sua jornada e toda sua dor, por que ele ainda está lá? Se o ser humano possui a capacidade divina de colocar-se no lugar do outro, se há tantos com tanto, por que Plá plá ainda está preso à pedra da rua e do abandono? Este lugar-comum não deixa de ser uma surpresa, numa terça-feira à tarde, quando decidimos ceder um lugar no nosso pensamento à realidade do outro.
Não é difícil adivinhar o futuro de Plá plá. É outra história conhecida, passeia pelo cinema, por livros, crônicas como esta.Um lugar-comum repetido à margem de nossas vidas. É um lugar-comum estuprado. A não ser que ele seja uma criatura absurdamente inteligente e consiga ultrapassar todos os limites que lhes foram impostos desde que nasceu, ele continuará com sua ilícita mendicância, insistirá nesta contravenção e encontrará paz e tranqüilidade na droga que engana sua tão aguçada lucidez. As questões que para nós desafiam a crença em Deus são para ele pura revolta e angústia contínua. Mas não, não desafiará seu credo numa vida justa e igual após o fim do corpo que o maltrata diariamente. Onde não há shopping center, onde crianças como ele, possuidoras de pernas, braços, órgãos respiratórios, telencéfalo altamente desenvolvido e dedo polegar opositor podem agregar valores por vezes completamente desconhecidos ao seu imaginário de simples sobrevivente.
Voltemos à questão da condescendência com os adultos malvados que uma vez já usaram lancheira e possivelmente compartilharam seu lanche com um outro pequeno. Perdoar não está fora de questão, pois o cristianismo prega o perdão infinito diante do arrependimento. E, segundo F. Pereira da Nóbrega, o perdão é mais que humano, pois está perto de Deus. E a busca da perfeição divina deve ser meta constante na vida de todos. Entretanto, é cabível ser compreensivo, condescendente, quando vemos Plá plá crescer na miséria devido à desatenção do Estado? É correto deixar o sentimento de revolta morar preso, acorrentado no coração apertado daquela criança?
O Estado é formado por homens. A maioria deles freqüentou a escola e usou lancheira. Se alguns deles escolheram posicionar-se, ainda que só visivelmente, no lado dos estritamente maus, devemos ser condescendentes e encara-los de forma carinhosa ou tomar partido , não apenas visivelmente e para o nosso bem estar, no lugar dos estritamente bons, procurando apagar a compreensão e acabar com o conformismo? A condescendência para com esses adultos é perigosa. E ela tem seus disfarces. Reclamamos e discutimos, falamos mal do Estado. Mas quando somos omissos, quando não participamos, estamos sendo compreensivos com o abandono em questão. A bondade passiva é uma forma de maldade.
O pensamento deve voltar-se para o fato de que quando Plá plá crescer e se tornar um adulto, ninguém será condescendente com ele. Ele irá roubar o que deveria ter também e será severamente punido. Será severamente punido por procurar o que é seu de direito, ilegalmente, porque esta é a possibilidade que está mais ao seu alcance. E não devemos julgá-lo por escolher o mais fácil e sim, antes, julgar-nos a nós mesmos por permitirmos que assim seja. Não estamos também escolhendo o mais fácil? A culpa está dissolvida entre todos nós. O Estado é representado.
Sabemos, enfim, porque ninguém será condescendente com Plá plá. Plá plá nunca foi à escola e nunca usou lancheira. Plá plá nasceu homem.
Myriam Gadelha
João Pessoa, 03 de Março de 2008