quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tri


TRI 

Por José de Paiva Gadelha Neto 

Minha relação com o Flamengo sempre foi meio louca mesmo. Me lembro
bem, quando criança, todos da minha idade sonhavam em conhecer a
Disneyworld, se empolgavam ao falar do desejo de brincar na montanha
russa, conhecer o Mickey Mouse, sei lá o que. Eu só queria saber de
conhecer o Maracanã.

Meu pai, um rubro-negro apaixonado, achava isso o máximo e sempre me
apresentava aos amigos dizendo: “Esse é meu filho, Flamenguista, ano
que vem vou levá-lo para conhecer a Gávea e o Maracanã”. As passagens
de avião não eram baratas como hoje, e nós morávamos a quase 3 mil
quilômetros do Rio de Janeiro, além disso, meu pai temia a violência
também.

Com internet, TV por assinatura, Pay-Per-View, as informações são
abundantes e é possível ter notícias em tempo real e assistir todos os
jogos do mais querido, mas quem tem mais de trinta sabe da dificuldade
que era acompanhar notícias e jogos naquela época. Sabia apenas do
horário dos jogos, então, quando faltavam 15 minutos para o início dos
jogos, subia em cima do telhado da casa, acompanhado do meu velho
rádio. Passava aquelas 2 horas com o dedo no tuning do rádio, mexendo
para cima e para baixo, sem sucesso. Existia uma lenda que dizia que as
ondas da Rádio Globo caiam na cidade de Sousa, na Paraíba, onde eu
morava. Bom, chamo de lenda porque no período do jogo, eu escutava a
voz de José Carlos Araújo umas 3 vezes de 4 segundos cada, e claro, era
uma vibração: “Escutei, escutei”. Quando passavam as 2 horas, eu não
sabia patavinas do que tinha se passado no jogo, não tinha outra
alternativa a não ser telefonar para o Flamengo, saber o placar do jogo e
esperar o compacto na Bandeirantes. Também cansei de assistir esses
compactos e vibrar como se estivesse vendo o jogo ao vivo, afinal, não
tinha idéia do placar. Meu pai, claro, achava o máximo.

O tempo passou, fomos morar em João Pessoa em 1995. Agora já existia a
Globosat, e a Sportv já mostrava alguns jogos do Flamengo. Um cara, dono
de um trailerzinho lá no centro da cidade, passou a exibir os jogos e
aquela novidade tomou conta da cidade inteira, o negócio tomou uma
proporção tão grande que na final da Taça Guanabara de 1996, fora
necessário fechar a rua e instalar um telão, para os milhares de rubronegros
que lá foram ver o show de Romário, Sávio e Cia.

Não demorou para os bares da cidade notarem o que mais tarde viraria
um bordão entre os empresários: “jogo do Flamengo lota”. Meu pai
adorou a idéia. Agora poderia ver todos os jogos, acompanhado de um
whiskyzinho, no conforto de um bar e ao meu lado. Só não posso mais
dizer que ele achava o máximo, porque agora ele tinha que conter os
meus excessos oriundos do fanatismo que, por sinal, tinha sido inserido
em mim por ele.

E assim ficou a rotina: Jogo do Flamengo, cachaça e promessa de que no
próximo ano vamos ao Maraca. Meu sonho ainda não tinha se realizado.
Veio a série do tri e na festa do Bi-campeonato, lá na calçadinha de
Manaíra, local das festas do Mengão em João Pessoa, ele me disse: Ano
que vem a gente vai de todo jeito.

É... meu pai não chegou no “ano que vem”. Em novembro de 2000 ele foi
morar com papai do céu. Foi levar a alegria de ser rubro-negro aos céus,
pois a alegria foi o que regeu a vida de Doca Gadelha inteira e eu me
recuso a falar dele com tristeza.

Eu completaria 22 anos em março e só quem já passou por isso sabe o que
são os primeiros meses de uma perda dessa natureza. Foi então que o
Mengão cumpre sua rotina e se classifica para a final do Carioca de 2001 e
ao serem divulgadas as datas dos jogos, surgiu uma promoção, que hoje
pode parecer bobagem, mas na época não era uma coisa comum, ela
dizia: “ Passagem ida e volta, hotel, traslado e ingresso por apenas R$
900,00, parcelado em 6 vezes”. Eu não podia acreditar, tinha chegado a
hora, eu ia conhecer o Maracanã, o sonho que eu tinha desde os 5, 6 anos
de idade estava prestes a se realizar.

Imediatamente liguei para Guto, um amigo de infância tão louco pelo
Flamengo quanto eu, e quando dei notícia da promoção ele respondeu
perguntando: “qual o número da sua conta para eu depositar o
dinheiro?”. Saí correndo para a agência e fui o primeiro a comprar o
pacote. Fui o primeiro de sete pessoas. É, você leu certo, apenas sete
pessoas compraram o pacote, as sete pessoas que não suportaram a
ansiedade e procuraram a agência antes do primeiro jogo.

Os caras ganharam o primeiro jogo, tínhamos que ganhar por dois gols de
diferença e a viagem estava paga. O que fazer? Vou ao Maracanã pela
primeira vez pra perder? O Flamengo vai ser vice depois de dois títulos em
cima do maior rival?

Liguei para Guto e perguntei a ele se ele queria desistir. Confesso que nós
dois não acreditávamos muito, mas como já estava pago, a viagem não
poderia deixar de ocorrer.

Aproveitei que estava dentro do avião, portanto mais perto de Deus e fiz
uma promessa de passar seis meses sem tomar refrigerante se voltasse de
lá tri-campeão. Se estiveres perguntando porque não fiz pra passar esse
tempo sem cerveja, respondo dizendo que a promessa começaria a ser
cumprida logo após o jogo. Como eu iria comemorar? Sem cerveja? Sem
chance.

Chegando no Rio o grande grupo de sete pessoas foi fazer os passeios
tradicionais, Pão-de-açúcar, Corcovado, praias, e claro, a Gávea.
Amigo, hoje tenho uma filha e vejo a reação dela quando chega em um
parque de diversões, corre de um lado para o outro, quer andar em todos
os brinquedos de uma só vez. Eu estava igual. Queria estar na sala de
troféus, no campo de treino, no ginásio, na piscina e na Flaboutique ao
mesmo tempo. Claro que comprei a loja toda, né?

Era sábado, estava anoitecendo e ainda não tinha conseguido tirar
nenhuma foto com nenhum jogador e no local que eu estava aguardando
os jogadores saírem do vestiário só tinha um carrão que eu não tinha idéia
de quem era, foi então que aparecem dois jogadores, o dono do carro era
o melhor do time, o Pet e o carona era o pior, o Maurinho. Fiquei nervoso
na hora, quase derrubo a câmera, mas desnecessariamente, pois os dois
foram bastante solícitos e ao nos despedirmos, disse a ele que tinha vindo
da Paraíba só assistir ao jogo e queria aquele título. Ele respondeu com o
sotaque carregado que lhe é peculiar: “Famo vê”, traduzindo, “Vamos
ver”. Aquela noite eu não dormi, passei a noite virando na cama do hotel e
dizer que estava ansioso é pouco, eu estava beirando a loucura.

Chegou o dia, era época de apagão e o jogo começava ás 15h, chegamos
ao Maracanã ao meio-dia. Que coisa linda, aquela imensidão, que eu
achava que conhecia pela televisão, era mais lindo do que eu poderia
imaginar. Totalmente vazio, eu cheguei a duvidar que todos os espaços
pudessem ser ocupados três horas depois. Nossos ingressos eram para as
cadeiras brancas, que ficava em uma posição onde se via o jogo de frente.
Mas o dia era de perfeição, não podia faltar nada. Olhei de lado e Guto já
estava chorando, então lhe disse: “Vamos para a Raça!!!” O cara topou
sem pensar e lá fomos nós.

A Raça é a maior torcida organizada do Flamengo e ficava reunida atrás do
gol nas cadeiras verdes. Lá estávamos. Medo da violência? Meu amigo, a
emoção que se sente ali só pode ser comparada ao nascimento de um
filho. Você não pensa em outra coisa. É o tipo da coisa que o cara não tem
o direito de morrer antes de sentir.

Começa o jogo e a tensão que sentia naquele instante é algo inexplicável,
me sentia meio que responsável em levar aquela taça para a Paraíba.
Termina o primeiro tempo, no placar 1x1. No intervalo o clima na
magnética era de velório, galera cabisbaixa, triste. O time volta a campo e
com ele volta também o fervor da nação. Comparo aquela reação com a
de uma mãe que está triste por alguma coisa, mas quando vê um filho se
refaz para não deixar o filho preocupado e/ou entristecido.
Edilson marca um gol de cabeça e aí as esperanças ressurgem, posso até
confessar que de forma tímida, apesar de acreditar, já passava dos
quarenta minutos e naquele momento estava naquela de me autoconformar.

Pensava mais ou menos assim: “Vamos ganhar o jogo, não vou
sair daqui com o título, mas já ganhei dois deles, tá bom”. Mas como já
disse, amigo, aquele era dia de perfeição. Edílson sofre uma falta e aquele
cara que eu tinha falado no dia anterior ajeita a bola para bater. Olho para
trás e pergunto a um cara que estava marcando o tempo em quanto
estava e ele responde, 42. Pensei: é agora! Estava quase atrás do gol e o
cara manda o chinelo... O curioso é o que ocorreu em uma fração de
segundo. Do local que eu estava não vi a bola entrar mas escutei a galera
gritar, e imediatamente, vi a bola cair dentro gol. Não sei se reparam, mas
aquela bola não balançou muito a rede.

Meu irmão, foi a maior incidência de loucos por metro quadrado que eu já
vi na minha vida, gente chorando, passando mal, desmaiando. Se você que
esta lendo isso não é Flamengo jamais vai entender esse sentimento,
quem é Flamengo sabe do que eu estou falando. Meu sonho estava
realizado de uma forma que nem eu sonhava, foi tudo perfeito, foi tudo
além. Independente de religião, fica difícil acreditar que meu pai não tem
nada haver com isso.

Hoje é dia 27/05/2011, ou seja, aniversário de dez anos do tri-campeonato
e da minha estréia no Maracanã (fui mais três vezes depois). Também faz
dez anos que meu pai nos deixou e os dois acontecimentos me dão a
sensação de terem acontecido ontem.

Meu pai me prometeu que estaria, DE QUALQUER FORMA, comigo em
2001 no Maracanã, tenho certeza que ele estava. Meu pai morreu sem
saber que resolvi seguir a sua profissão, tenho certeza que ele sabe.

JOSÉ DE PAIVA GADELHA NETO