terça-feira, 12 de abril de 2011

Virei palmeirense!


Quando mamãe ficou grávida de Lafa, meu pai, com medo que eu me acometesse de um ciúme brabo que é praga forte na família, comprou um filme de vídeo cassete e colocava todos os dias para eu ver e ouvir. Eu cantarolava feliz os versinhos de “temos um novo irmãozinho, papai e mamãe dão muito carinho, nada melhor podia ter acontecido”, e todos acharam que estava tudo muito resolvido.

Nada feito. Nove meses depois chegou o meu irmãozinho, gordo como uma bola, mais vesgo impossível, orelhas maiores do que sua cabeça. Não fosse tão gordo, daria a idéia de serem asas. Se tivessem escolhido o nome na hora, eu desconfiaria que a razão tinha sido o tamanho das orelhas do menino, iguaizinhas as de Vovô Lafayette. Achei tão feio, tão feio, que não compreendi o estardalhaço de toda aquela gente em cima do bebê. Mas mamãe estava feliz demais, e acharam injustiça dizer que ele era horrendo. Até vovó e Tio Dalton, habitualmente muito sinceros, viraram juntos várias latinhas de cerveja antes de proferirem o veredicto: ele não é desse mundo, Aline! Parece Pirrita.

Demorou um tempo até notarem que eu, até então a dona do pedaço, linda e loira como uma boneca de porcelana no auge do meu um ano e meio de idade, estava ali estatelada e esquecida, e me convidarem para acariciar a coisa. Já estava indignada. Afinal, papai nunca me deixava pra trás por nada no mundo. Dizia constantemente que eu era a mocinha mais bela do planeta, que, às vezes, virava os olhos de mim com medo de colocar olhado, de tão bonita que me achava. Ultrajada é que me dispus a chegar perto de Lafa. De mansinho, fui alisando a cabecinha dele e balbuciando “ó, meu irmãozinho, fofinho...” e, de repente, sem notar, já tinha arrancado um tufo dos ralos cabelos loiros do neném naquele falacioso gesto de carinho.

Sabia que estava encrencada. A confusão foi grande, ele berrava alto e eu corri o mais longe que pude pelos corredores do hospital. Papai me alcançou e perguntou se eu não lembrava da musiquinha. Eu não sabia dizer, mas achava mesmo era que nada pior podia ter acontecido. Mal sabia que o pior ainda estava por vir, quando voltamos pra Sousa (sabe lá porque cargas d’água Lafa foi nascer em Campina). Muitos tufos de cabelo arrancados e muito choro de Vovó por causa da minha maldade sem precedentes com aquela criatura ingênua, até eu perceber que não tinha jeito. Precisava me aliar.

Não importava se eu era bem mais bonita que ele, éramos igualmente tratados. Claro, eu continuei achando absurdo. Mas resolvi aproveitar o admirável mundo novo. E, lentamente, descobri que um vesguinho gordo com orelhas de abano viria a ser o meu melhor amigo, desde a mais tenra idade.

Ele se encantou comigo desde que se entendeu por gente. Logo quando aprendeu a emitir os primeiros sons, sem saber falar Myriam direito, saía gritando pela casa: Iáá, Iáá. E até hoje me chama de Iaiá. Acho que ele já sabe dizer Myriam, mas ainda chama Iaiá.

À tardinha, íamos à praça e eu brigava com quem o chamasse de zarolho, ainda que eu mesmo chamasse, dentro de casa, só entre nós dois. Ficava em casa com ele quando ele tinha que usar aquele tampão horrível em um olho só, que eu nunca entendi pra que servia. Brinquei de Jaspion, Power Rangers e Jiraya, e nem achava um tédio. Tivemos um vizinho meio psicopata que o obrigava a ficar horas no sol quente se ele errasse um passe de futebol. Quando eu descobri, o psicopata, que hoje é nosso amigo, levou uma surra da qual nunca vai se esquecer.

Meus amigos eram amigos dele e vice-versa. Viemos morar em João Pessoa. Tínhamos uma gangue enorme que explorava as casas de veraneio abandonadas durante o inverno em camboinha. Eu, Lu, Leo, Deló, Luquinhas, Bruninha e Lafa. À noite, mamãe e papai tomavam vinho na beira da praia enquanto nós dois esperávamos juntos as redes de pescadores aportarem na areia para pegarmos os peixinhos menores, ou ficávamos correndo com nossas cadelas. A dele, Duda, a minha, Lara.

Eu gostava de tudo nele. Tudo era divertido, ainda que estivéssemos apenas os dois. Eu achava graça e me aproveitava de quando ele não queria ir a um lugar (e eu também não), tirava toda a roupa e corria gritando pela casa: só vou se for nu! Ele ficava comigo quando eu adoecia, e não contava pra mamãe se eu fazia uma trela. Foi ele que escondeu meu primeiro beijo, com um primo, na frente da antiga casa de Lindolfo Pires, encostada numa árvore. Não contou a ninguém. Mas eu dedurei o primeiro seis que ele tirou em matemática. Foi ele que jogou trinta partidas de xadrez comigo, quando eu acabei o meu primeiro namoro e só me distraía com aquilo. Foi ele que me ensinou a usar vírgulas e melhorar as minhas redações, já que Zarinha agraciava as dele, quase sempre expostas na parede da recepção do cursinho, com um “Quase Perfeito”. Também foi ele que me ensinou física do primeiro ano, quando eu já estava no terceiro. Eu lhe ensinei a cantar o Hino Nacional, porque nós adorávamos cantar juntos e, quando ele largou a bateria e o rock, pelo violão e a igreja e virou um crente fanático, o Hino era a única música que podíamos cantar juntos - as outras eram mundanas. Nem a religião foi um entrave entre nós. Ele tentava me converter, e eu também tentava convertê-lo. Acabou que ele mesmo deixou aquele fanatismo exacerbado, depois de ler a Bíblia duas vezes, saliente-se, e até começou a considerar que eu pudesse ir para o céu, mesmo dizendo “caralho”, de vez em quando.

Eu atualizei-o dos novos palavrões e das novas velhas músicas, e viramos nós dois fãs de Beatles, Belchior, Bob Dylan, Novos Baianos. Temos um repertório imenso. Cultuamos a revolução e os comunistas. Hoje, nos decidimos pelo capitalismo humanista. Mas ainda temos blusas com a fotografia de Che com os dizeres: ele está morto, faça sua revolução. E ainda acreditamos na revolução, ao nosso modo. Juntos fizemos esse pacto, de fazer a revolução, meio que bêbados, num barzinho na Lapa, quando descobrimos juntos o Rio de Janeiro. E vamos fazer.

Até hoje, só houve um empecilho entre nós. Em 1995, o monstro verde chegou de súbito para abalar as estruturas de nossa linda amizade. Onze homens, todos vestidos de verde, em um gramado verde, com o nome Parmalat nas costas começaram a assombrar minhas quartas-feiras e meus domingos. Lafayette se apaixonou pela primeira vez. O nome dele era Palmeiras, e eu detestava tanto aquele time que voltei a arrancar os cabelos do meu irmão de novo. Beliscava-o no meio do jogo, desligava a televisão, e, como nada adiantou, tomei uma séria decisão: virei corinthiana.

Ele já não era mais tão menor que eu, então a tapa rolava solta. Também perdi cabelos, e um abajur de peninhas, que ele depenou, uma a uma, na final da libertadores de 2000. Eu liguei o som nas alturas com o hino do timão e pulei serelepe pela sala. Ele trancou-se no meu quarto, usou um batom de mamãe para escrever um gigantesco “gorda” no meu espelho e, feito isso, depenou o meu lindo abajurzinho cor de rosa.

Muitas brigas viriam. Papai, achando absurdo o meu comportamento, adotou o Palmeiras como seu primeiro time (antigamente, como não havia campeonato brasileiro, era possível ter um time em cada estado, de modo que meu pai era flamenguista no Rio e Palmeirense em São Paulo, mas, flamenguista, depois que veio o Brasileirão e similares). Lilice nasceu já palmeirense. Eu insistia no meu Corinthians, porque, até a chegada do Palmeiras, nada havia me separado tanto do meu irmão. Não fui tão esperta como quando ele nasceu: em vez de aliar-me, resolvi bater chapa. Bobinha. Passei domingos em crise nervosa ao ouvir os gritos de gol, abandonada no meu quarto, sem companhia. Não me veio a idéia de que poderia estar com ele, comendo uma pipoca e, anos mais tarde, tomando uma cervejinha, os dois vestidos de verde.

O tempo passou, o Palmeiras continua sendo o grande amor da vida de Lafa, depois de Keoma, claro, sua namorada, de quem também me fiz aliada, grande amiga e até incluí-a nos nossos planos revolucionários. Ela topou sem pestanejar. Hoje somos três. Aliás, quatro. Há o nosso fiel escudeiro Iarley Maia, também um sonhador. E, como bem disse John Lennon, espero que um dia mais gente se junte a nós. Lafa ainda é o meu melhor amigo, e ninguém no mundo me completa como ele. Completa, ama, agüenta. Ninguém me diverte como ele. E eu não admiro ninguém como admiro meu irmãozinho. Não porque ele deixou de ser vesgo (tá até voltando a ser, inclusive), emagreceu, não tem mais orelhas de abano e é um gato. Mas porque ele é companheiro, inteligente, engraçado, um excelente cantor, futuro grande jurista e, sobretudo, porque é muito, muito solidário. De um altruísmo inigualável. Dizem que puxou ao meu bisavô Tozinho, que chegou a dar de presente um cartório que tinha. Nem me atrevo a dizer que sou assim. Por isso, coloco Lafa em um pedestal.

Não foi depois que meus pais morreram que aprendemos a tomar conta um do outro. Foi sempre assim, já que, quando eu tinha 12 e ele 10, passamos a morar sozinhos em João Pessoa. Outro dia tive pneumonia. De novo, Lafa não saiu do meu lado, sabia direitinho a hora de dar o meu antibiótico e o xarope. Tomou uma xícara de sorvete da minha mão, enquanto eu tentava traçá-la escondido. Aí eu me dei conta de que um erro, mesmo que tenha sido cometido, ininterruptamente, por quase quinze anos, ainda pode ser consertado. Que o Palmeiras nunca poderia nos separar, nem antes, nem hoje. E já que ele saiu na frente escolhendo seu time do peito, não tenho motivos para pedir para que ele seja corinthiano. 

Faço, agora, o Palmeiras o time do meu coração. Escolho, de hoje em diante, domingos e quartas-feiras menos solitárias. Escolho um time que ganhou a libertadores (um tanto oportunista, este argumento, ok). Acho que nunca fui corinthiana de verdade. Quando o Palmeiras perdia e Lafa ainda era pequeno, chorava muito. No fundo, bem, bem no fundo mesmo, eu ficava triste porque ele estava triste.

Através desse texto deixo o comunicado. Virei a casaca. Tive que fazer uso de muita emoção,é verdade. Porque, mesmo sendo muito altruísta, Lafa nunca vai perder a oportunidade de, ao saber da novidade, dar uns petelecos na minha cabeça e dizer divertido: E aí, o verdão é ou não é o melhor? Dá-lhe porco, dá-lhe porco!


M.