quarta-feira, 10 de julho de 2013

Uma cidade cheia de espíritos é a minha

Uma cidade cheia de espíritos é a minha cidade. Mas, ainda assim, devo lembrar de que quem não tem raízes, o vento leva. E tendo Hesse dito que há gente que são folhas arrancadas, e outras que são tão perenes quanto os planetas que rondam o sol, seguindo sempre sua órbita e rotação, sem que qualquer evento as tire de sua rota, esta lição não me serviu.

Sou como uma folha arrancada, mas também as folhas arrancadas não têm raízes? O grande paradigma é que elas caem e se esvaem ao sabor dos ventos e das brisas. No meu caso, de uma brisa atlântica. É a brisa atlântica que agora faz meu rumo, e me dá medo que me leve à África, de tão solta que estou.

Não obstante, fazem-me falta aquelas tardes quentes, de calor tão lânguido que chegava a arrefecer o coração. Mamãe dizia que devíamos sair alinhados, mesmo que o linho nos aquecesse mais do que outras vestimentas leves e mais apropriadas para o semiárido. Sair em linho era sair arrumado, e era deste modo que nos vestiam para os crepúsculos, na praça do Cristo.

Afeiçoei-me às praças, como me afeiçoei a Charles de Gaule em Antibes, e quis encher Sousa de chafarizes, na esperança ingênua de transformá-la em uma cidade mais úmida. Os arfantes e pueris desejos de uma adolescente que, embora num país distante, sentia falta mesmo era de seu amplo terraço de piso vermelho numa casa chamada Casa Grande.

Quando eu ainda era bem pequena, naqueles tempos amorfos, onde tudo que podemos lembrar não são senão sensações e imagens retalhadas, poucas memórias me vêm tão vivas quanto os finais de tarde de calor abafado na praça do Cristo em Sousa.
Como disse, tenho muito apreço por praças. Nos meus primeiros anos, tudo quanto eu fazia era me alinhar para, junto com meu irmão Lafa, sairmos às praças, subir as escadas do coreto na Matriz, admirar a estátua de vovô José e a árvore plantada por Lella e Zé Neto no Bom Jesus, sentar nos bancos da André Gadelha até a noite cair, e esperar, ansiosamente, pelos pasteis quentinhos das querubinas, que sairiam, pontualmente, às seis da tarde.

Na BomBolado, meu desejo era sempre o de uma recheada banana Split, mas nunca podia - apenas uma bola de morango: você não consegue comer sorvete tão grande, diziam-me. E fiquei com sonhos de banana Split até hoje, como se não pudesse nunca me deliciar com as sobremesas dos cartazes.

 Um dia, fui agraciada com esse direito, e, com grande desapontamento, na tenra idade de quatro anos, vi que os cartazes nos dizem mais mentiras que os homens que nos beijam com olhares apaixonados, mas cheios de sentimentos vis.

Morei em Sousa até a idade de cinco. Mas minha festa da padroeira continua sendo a Festa de Setembro. Fui à Festa das Neves em alguns cincos de agosto, aqui em João Pessoa, e acho que em nada se parece com uma verdadeira quermesse.

Roda gigante só tem sentido se eu puder ficar frente a frente, com a torre da Matriz. Fitamo-nos sempre com tanta cumplicidade, como velhas amigas, que até quando ela caiu, eu senti que ainda estava lá, porque é assim que acontece com aqueles com quem dividimos nossas vidas: longe dos olhos, mas sempre perto do coração.

Viajei para Sousa tantas vezes que, no fim das contas, sinto que a minha casa é a BR 230 ou, melhor, a rodovia Antônio Mariz. E, indo para a cidade Sorriso de carro, tão sozinha, nas sinuosas curvas da estrada da viração, penso que estou sorrindo para quem pode olhar do céu, já que o antigo governador que deu nome ao caminho, dizia que, quando em seus voos, ou discursando do alto de um palanque, sob a luz das gambiarras que parecem acender aplausos, pensava que Sousa lhe sorria.

É um vale sorridente, pois sim. De ruas largas, mas feitas de paralelepípedos. E o cheiro mais aprazível do mundo inteiro é o dos paralelepípedos noturnos, molhados da chuva forte que cai por sorte na semana santa, ou por destino, no mês de janeiro. E as gramas dos jardins se enchem de sapos, e as pequenas meninas, pensarão como eu pensei um dia, sempre em príncipes que um dia lhes namorarão naqueles gramados.

Do sertão fui retirante, mas não da seca. O bicudo que travou os imensos campos de algodão e trouxe meus pais ao litoral. Uma usina desfalecida, um apartamento pequeno no 777 da Edison Ramalho. E João Pessoa descortinou-se para mim como uma imensa metrópole, cheia de luzes que até então eu nunca tinha visto.

Minhas luzes eram os vagalumes que perseguíamos no quintal da Casa Grande, e - perdoem-me o bucolismo de uma alma saudosa - as das estrelas de tempos imemoriais, que eu via da rede do Terraço de Piso Vermelho, enquanto minha mãe me balançava impaciente, porque nenhum menear de rede, cantiga de ninar ou colo de quem nos ama tanto era capaz de me fazer dormir.

Eu só dormia com a voz de barítono do meu avô e o teclado de vovó, entoando ao longe aquele “negue, o seu amor e o seu carinho...”, ou com o saxofone de Tio Nias, cheio de baladas de um jazz que nem ele próprio sabia decifrar. O Mal de Alzheimer tomou o som destes preciosos homens, e me deixou insone até esses tempos modernos, quando nem mesmo uma velha radiola consegue embalar meu sono.

No lugar de vagalumes, passei a caçar tatuís e caranguejos na praia de Camboinha. Os tatuís são bichinhos fugidios que  escorregam das nossas mãos, ao tempo em que as ondas se afastam da areia. Já as conchas são seres mais mansos. Parecem ansiosas para servirem de colares. E assim é que esfolávamos suas pontas, até fazerem um buraco na ponta, para transpassarmos por ela um barbante e pendurarmos orgulhosos em nossos pescoços, como verdadeiros catadores de conchas, de tão frustrados que estávamos com os tatuís.

Mas a grande frustração era a ausência de praças, que nenhum sargaço, por mais suculento que se mostrasse, poderia suprir. A praça do Bom Jesus, animada as seis da manhã pela música sacra que fazia tocar padre Dagmar. E, quando ele morreu, achei que tinha morrido todo o sentimento da Igreja, e nem mais me dava medo o Jesus Morto feito de cera, preso num caixão nos fundos da sacristia.

Eu acreditava de verdade que aquele Jesus Morto era o próprio Jesus, e, por isso, a minha cidade era a mais importante do mundo, porque conservava o corpo do Cristo incólume nos fundos de uma paróquia de arquitetura dos anos 1970. Uma Igreja que antes se assemelhava a uma repartição pública, e que depois me deu a compreensão de que o Jesus Morto era o único finado que ali ficaria, já que meus pais foram velados naquele altar e, muito cedo, antes do que eu queria e esperava, naquele dito momento de louvor, levados para um cemitério próximo.

Uma cidade cheia de espíritos vivos, também. Embora a noite seja tranquila, do meu terraço de piso vermelho, o vento que vem do Aracati me permite pensar que comungam junto comigo o litoral e o sertão. Sinto em seu cheiro, mesmo que distante, os sinceros desejos de Iemanjá. Ela diz ”venha comigo”, e eu peço, “deixe-me ficar”. Sento as cadeiras de balanço na calçada, mais serena do que atormentada por essas aparentes antinomias. Balanço-me como quem tem sono, bocejo como quem vou dormir, mas a Aurora vem de assalto, como a princesa do conto que despertou depois de cem anos, sem ter envelhecido nada, sequer.

É assim a minha cidade. Que faz mais um ano no Frei Damião, na Guanabara, na Várzea da Cruz, no Alto do Cruzeiro e em tantos outros bairros onde presenciei comícios que sempre me aconchegaram com a certeza singela de que não há luzes mais bonitas que as de vagalumes e gambiarras mal dispostas.

Um dia, amanheci cedo no Angelim, em rondas de campanha, vigiando aqueles que compram votos. Vi o sol nascer de longe, emergindo, como para iluminar o Cristo Morto, inerte, na Igreja do Bom Jesus Eucarístico. Mas não era o Cristo morto o seu desígnio, mas antes o Cristo erguido na praça dos meus alinhos. O Cristo alto, austero, misericordioso, como deve ser. O Cristo do milagre da hóstia.

Caminhei até lá intrigada. Vi algumas velas se apagando com o amanhecer. Aqueles pedidos tão queridos. E, em vez de pedir por mim, pedi por cada desejo aceso na noite anterior, em cada uma daquelas velas. Vagalumes, estrelas, luzes de edifícios, não importa. São luzes da cidade acesa que duram para muito além da alvorada.

O 10 de julho me tomou de assalto, atraiu lembranças, machucou o coração apertado de quem não pode beijar de perto o aniversariante que tanto lhe deu amor. Vivo na capital, aprendo no Leão do Norte, visito a Borborema com carinho. Mas ser do sertão é talvez a tola esperança de nos acharmos tão fortes quanto uma cidade árida, submersa num vale que sorri. E isso sempre nos valeu.
 
M.