terça-feira, 5 de junho de 2012

Sisos

Sisos.


Coincidu com o despontar dos meus terceiros molares. Era uma dor causticante, fazia sangrar e eu cheguei a ficar com pena dos bebês, ainda que não me lembre como é ser bebê e ter todos os dentes rasgando a gengiva de uma vez só.

Achei que, enfim, cresceria e que com meus sisos viriam o tão esperado siso de mente, mas não. A sangria desatada na boca me deixou em estado de folia, a dor de cabeça, a inflamação e até um pouco de febre me fez desejar doses cavalares de uísque ou duas garrafas de vinho por noite, sem falar no rivotril, o paraíso artificial mais procurado nos tempos modernos, o ópio do século XXI.

Mas qual o que, não sou deste século. Nasci no 7 de novembro de 1989, para ver um mundo sem muros. No dia 10 do mesmo mês, do mesmo ano, casava-se em Paris meu amigo Jean, para quem a queda do muro resultou na ideia de que a liberdade caminha para onde quer que encontremos sossego. No seu pai, milionário e cocainômano, não viu senão aprisionamento.

Do álcool, veio uma sensação arcaica de precisar fazer uma cirurgia embriagada por falta de morfina, ou pela insuficiência desta. Pensei em grito: anestésicos, onde estão? Mas só um copo - baixo e sem gelo - de old parr, para suprir a alucinação. Nunca tive muitas dores - de corpo - e as da alma aprendi a estancar com estes mesmos instrumentos: destilados e fermentados, como se queira. Uma cerveja, uma sinuca, um tabuleiro de xadrez para trazer a entropia fervorosamente suplicada.

Café quente eu não podia, mas engolia, pelo bem da minha silhueta, que se avantajava dia a dia em razão do carbicídio que me ocorria vez por mês, antes da menstruação. E eu não estava ficando mais jovem, não, tampouco meu metabolismo. Só o elixir preto combatido pelos mórmons me fazia sentir mais tranquila depois de uma fatia de pudim de leite. No mais, o medo de Mitt Romney também aumentava bastante a ingestão: se aqui embaixo eu nada podia fazer por Obama, só me restava a revolução individual. A cada gole, pensava eu, uma mensagem de ódio enviada ao republicano.

Em 2012 - creiam -ainda há muitos e muitos muros. Dia 31 do mês de maio foi o dia da luta contra o tabaco, e eu pensei: preciso ir à Paris, antes que aqui ninguém mais me compreenda. O direito de fumar ficou em technicolor, mesmo Carry tendo fumado durante quase toda a década de 90.

Eu estava me formando e nada parecia mais impreciso. A escola do direito livre, o Estado Social, a capacidade contributiva e a pirâmide kelseniana não me proviam senão arroubos de indecisão. E os sisos em disparate, duelando com meu espírito conturbado. Mais um cigarro, dois momentos de solidão. O jornalista bêbado, eu seria? Um caso de amor. Tamborilando.

E o livro. Há quatro anos eu escrevia um livro, cinco frases por mês, e o pensamento cambaleante em cinco, seis línguas. Sem conseguir escrever e mentalmente privada de cigarro, fumava um atrás do outro para atropelar ainda mais o raciocínio. A cada tragada, um sentir de veia entupindo, de sangue engrossando, de falta de ar. Esse devaneio simplista de o trago tragando a vida, e eu não me importando. Que longe esse futuro de asfixia, não? Mas as semanas do ano passado passaram tão rapidamente que, de repente, eu fiquei com saudade dos dias mais sem graça.

É que a tragédia do presente é que o nome precisa do aposto 'de grego', senão nem faz sentido.  Somos soldados da tragicômica filosofia da esperança de que os anos mais lindos são os que ainda não vivemos e, no entanto, quando eles vêm, só trazem mais pânico e lucidez. E o preço da lucidez, sussurram-me os tempos idos, é a angústia.

Estes sisos terminaram com minha ansiedade pelo porvir e me deixaram nauseada com o aqui e o agora. Trêmula e insone, mais uma vez. A insônia é tanto aquilo que criou Tyler Durden que me levou, às 3 da manhã, a um chat americano de deficientes físicos. Por óbvio, tive de inventar o meu drama: uma jovem de 20 anos sem as duas pernas, perdidas junto com toda a família em um acidente de carro. Larguei o namorado por não me sentir suficiente para ele, ainda que me queira muito, o rapaz. Mas tenho feito grandes avanços, recentemente: entrei para a faculdade de psicologia. Só ando com medo de que meus pacientes tenham mais pena do que confiança em mim, entendem?

E com novos dentes, novas vidas. Mastigo pior. Tinha que arrancá-los, será? Devo comer menos. O mundo é magro e esguio, no primeiro e terceiro mundo. Destoada estou porque vivo em país em desenvolvimento. Dá pena esse lugar comum. As largas ancas e o cabelo loiro. Um pueril esforço para me quedar bonita. O meio. Um tropeço, pernas roxas. Jamais as pernas de uma dama. Mas em outro lugar nem pernas mais eu tenho, de forma que meio que tanto faz. Mas quando eu tinha pernas elas eram bem arroxeadas, sabe? Nenhum problema de sangue, não, é que eu andava feito bêbada. Caía tanto que me chamavam madura, mas era só a imaturidade.

Sim, meus sisos cresciam. Um muro na minha boca que nasceu para não ter muro nenhum. Dizem que, com o tempo, esses dentes serão um resquício, como o apêndice. Nem crescerão mais, dada a sua ausência de função. Hoje, serve para me entortar a língua. Meu pesar físico era uma desculpa para o meu silêncio? Sim, eu justificava minhas longas ausências com este mal. Preste atenção! Mas me doem tanto os sisos... E um rosto agonizante.

 É um momento particular pelo qual todos já passaram ou irão passar. A maioria das pessoas que não morrerão antes dos 20. Lembram daquele poeta que gostava de uma lavadeira que morava do outro lado da rua, caiu do cavalo e morreu virgem? Eu sempre me pergutei se ele tinha sisos.