sexta-feira, 20 de junho de 2008

04:15.

Hoje tive certeza de que o meu relógio biológico é mesmo completamente alterado. Ontem fui dormir às 7 da manhã e acordei às 11, morrendo de sono ainda. Passei o dia naquele estado de tudo "é uma cópia, de uma cópia, de uma cópia" ou o que seja, o raciocínio mas lento da história, um frio de matar no meio dos trópicos. Esse cinza que não deixa a cidade. Quero dias ensolarados de novo, cansei da sensação de estar na Escandinávia. Tudo bem, é exagero, mas eu sempre fui assim e isso não é bom, tudo acaba sendo fatalmente intenso. A sensação de Escandinávia é um pouco como a de estar envolta pela bruma entediante de "Os outros", com Nicole Kidman. Lógico que não me sinto assim há meses, porque há meses que chove sem parar, mas, de vez em quando, baixa a sueca e eu fico assim.
Comi tanta geléia de morango com queijo e torrada que acho que nunca mais quero ver geléia na vida. Estou com medo de ver o dia nascer, queria estar disposta pra Campina, amanhã. Nunca mais acredito nessa história de que você deve passar um dia morrendo de sono pra dormir cedo à noite. Comigo nunca, nunca funcionou, a nao ser no extremo dos extremos, quando eu passava 3 dias sem dormir.
Também fico sem vontade de ler, esperando alguma conversa interessante no msn ou uma notícia interessante sair. Estou lendo "Paula" faz quase um mês. O ruim das férias é que você acha que tem tempo para ler todos os livros que estavam na espera e mais os que você comprou num dia sueco na livraria e então acaba não lendo nenhum.
Tem os livros 'fáceis' que ficam na cabeceira para momentos como este. Aqui tenho "Você é o que você come", que manda a gente só comer sementes de girassol, nunca carne, nada com cafeína, açúcar. Praticamente o iridologista que disse me proibiu de comer tomate. Tudo com tomate é bom e não é como essa geléia.
O iridologista é o especialista da íris. Ele tem um monte de fotos de olhos saudáveis e doentes no consultório, pega um aparelhinho com uma luzinha e diz se você tem um distúrbio no pulmão, no fígado, nos rins, o quão ansioso você é, até seu grau de melancolia. Minha irmã, que é médica, diz que não acredita nisso, mas todo mundo que vai lá fica impressionado com os acertos do homem e com as melhoras subsequentes. Inclusive a avó dela, a mãe e a prima. Acho que, na verdade, todos que vão se consultar no iridologista têm uma propensão maior a crer nesse tipo de ciência (será que Carl Sagan chamaria de pseudociência?), logo, as melhoras aparecem, mais ou menos expressivamente. Não acredito totalmente no potencial de transformação do iridologista, mas acho que pode ter, sim, um fundamento. Acontece que também sou meio fã de terapias alternativas.
Na época eu fiquei deslumbrada, porque ele disse que os meus olhos não eram realmente castanhos, eles estavam apenas opacos, na verdade, ele disse, você é dona de lindos olhos cor de mel que podem ficar verdes se você seguir essa alimentação aqui. Sério. Ele disse que a felicidade faz brilhar os olhos e, por causa disso, eles podem ficar mais claros. Eu gosto de poesia, portanto, engoli essa, maravihada.
A alimentação que ele passou era a proibição de quase tudo que eu amo comer, principalmente tomates. E comer alimentos vivos. Se cozinhar, eles morrem. Ele recomendou que eu comesse muito brócolis, mas vivo, ou seja, cru. Jô, que cozinha aqui em casa, morria de raiva dessa história de alimento vivo e morto, não colaborava em nada, aí eu abandonei o plano e o sonho de ver minha íris verde.
Dona Giselda crê na pomada do vovô Pedro, que é um remédio espírita que promete curar até câncer. Lella, minha irmã, fica com raiva porque diz que é perigoso, imagina se pacientes com câncer trocam quimioterapia por pomada do vovô Pedro? Dona Giselda me deu uma, eu cheguei a usar numa micose, mas confesso que, um pouco por causa de Lella, não levei muito a sério. Minha pomada do vovô Pedro é água rabelo. Eu uso água rabelo pra todas as coisas e, engraçado, sempre acho que funciona.
Minha tia ficou impressionada com a minha paixão por água rabelo, porque disse que minha bisavó também usava água rabelo pra tudo, todo dia tomava um gole, não vivia sem. E eu nunca soube disso, nem conheci vovó Benigna. Minha tia disse que a genética é, realmente, muito curiosa, porque foi só eu ter contato com esse líquido mágico pra me apegar a ele, sem nenhuma influência cultural da minha bisavó. Como se eu tivesse nascido na selva e, ao me deparar com música clássica, me apaixonasse a primeira vista, sem saber que todos os meus antepassados também eram loucos por música clássica.
Os outros livros "fáceis" da minha cabeceira: a vida de Botticelli, que eu acho que nunca nem abri, só vejo as fotos dos quadros e isso é suficiente pra dizer, nossa, eu amo Botticelli. Uh. E, claro, Baltasar Gracián, que leio sempre que posso, as mesmas coisas, sempre achando significados diferentes de acordo com o dia e com a fase. Hoje li que os livros nos tornam fielmente em verdadeiras pessoas, que ler é a primeira etapa da vida. Depois, devemos registrar tudo o que vemos e viajar o tanto quanto possível, pois nem tudo que há de bom está numa terra só. E, por fim, filosofar, que ele elege como o mais sublime dos prazeres.
Agora esquentou, mas eu ainda me sinto "escandinávia". Maldade com a Islândia, que é o país mais feliz do mundo, com seus 300.000 habitantes. Minha amiga islandesa disse que encontra o primeiro-ministro caminhando nas ruas.
Tento dormir? É um esforço tão grande que me cansa e perturba só de pensar.
Tento dormir ou isso vai ficar mais samba do crioulo doido ainda.
Myriam.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A porca de Lilice

Lilice é minha irmã mais nova de oito anos. Não vou defini-la como qualquer menina de sua classe e idade, pois geralmente, Lilice surpreende a todos com tiradas fantásticas e assertivas inteligentes. Acredito que seu pensamento é, inclusive, mais profundo do que ela nos deixa perceber. Outro dia perguntou-me de onde vinha Deus e quanto era o tempo Dele, já que não compreendia como algo podia ter sempre existido, tampouco existir para sempre. A eternidade é, para ela, como para todos, imagino, um conceito infinitamente maior que o alcance da mente humana. Em algum verão, enquanto olhávamos o horizonte lilás pincelado de laranja, Lilice comentou como aquela visão era linda e que, se possuísse o dom de pintar, pintaria aquele cenário estarrecedor. Ela tinha quatro anos à época. Entre suas opiniões políticas, está a de que Juscelino foi o maior presidente do Brasil, visto que Getúlio não passava de um covarde que entregou-se à morte e abandonou seu país. Além de tudo, Lilice possui grande envergadura moral e caráter firme.
Por essas e outras, papai acha minha irmãzinha um ser único e dotado de uma capacidade intelectual além do normal. Assim, resolveu presenteá-la com uma porca para guardar moedas, desde que ela respondesse às perguntas por ele formuladas todas as noites. Como ela estava apta a responder a maioria das questões, as moedas logo foram deixadas de lado e a porquinha rosa de Lilice ganhou cédulas de 10, 20 e 50 reais. Era um estouro. Para estimulá-la ainda mais em sua busca pelo conhecimento, eu e meu irmão Lafa, de dezessete anos, também entramos no jogo disputando o dinheiro. Para minha pequena flor a brincadeira ficou mais difícil: agora, não era necessário apenas que ela respondesse tudo corretamente, era preciso também que eu e Lafa errássemos o que nos era indagado!
A mim, destinavam-se os mais cruéis questionamentos do direito penal e do processo civil, matéria esta última que ainda nem tive o prazer de estudar na faculdade, de forma que havia uma certa trapaça no divertimento,o que garantia à Lilice quase sempre,a vitória. Lafa ficava a cargo de discorrer a respeito de fatos históricos de forma extremamente subjetiva, de rapidamente ter que lembrar a capital do Uzbequistão ou a personalidade de um personagem absurdamente secundário de um livro esquecido. Enfim, Lilice tornava-se, de um jeito ou de outro, a campeã soberana e sua porquinha, por conseguinte, ficava cada vez mais rica e gorda.
No último dia, antes de abrirmos o cofrinho, eu e meu irmão já esgotados e fartos de derrota, decidimos recusar nosso direito de resposta e fazer o êxito de Lilice ainda mais grandioso: assumimos expressamente que não tínhamos a menor chance e que seu embate seria contra seu próprio raciocínio e intelecto, ela seria sua própria rival. Na minha casa, as crianças nunca foram tratadas como crianças e nosso feitio moral foi construído passo a passo através de exercícios como o aqui descrito, além de outras duras pelejas seguidas de penas desenvolvidas com a destinação de criar indivíduos excepcionalmente fortes e irresistíveis às batalhas da vida. Ainda não é sabido se tal método funciona, mas, para mim, o efeito parece ter sido o oposto do esperado, uma vez que me vejo frágil e vulnerável aos humores diários.
Mas bem, voltando, a pergunta foi: em que situação Anne Frank escreveu seu diário? Os olhinhos de Lilice brilharam de emoção e a resposta foi instantânea: ela estava se escondendo de Hitler, que perseguia todos de sua estirpe. Ok, ela não usou estirpe, mas não é fácil saber, à idade de 8 anos, que Hitler buscava todos os judeus para destruir. Mas Lilice sabia. Ela tem um apetite insaciável por conhecimento, talvez mais por natureza, do que pelos estímulos lúdicos de meu pai. A porquinha ganhou mais 20 reais e no dia seguinte,minha irmã esparramou-se no sofá como um velho ganhador de dinheiro, contando cédula por cédula, moeda por moeda e, passados vinte minutos, concluiu que detinha a quantia significativa de seiscentos reais.
Por sermos humildes vencidos, parentes pobres rodeando sua fortuna, fomos agraciados, eu e meu irmão, cada um com cinqüenta reais. Didi, sua babá, recebeu também cinqüenta. O resto, ela decidiu que gastaria no final de semana em Recife, naquele imenso templo do consumo que é o shopping center da capital pernambucana. Agora tenho que falar dos defeitos dessa doce infanta: é uma gastadora nata, uma consumidora cruel, boa vida, ambiciosa e avarenta. Lilice ama o dinheiro e tudo o que ele pode comprar: Barbies e outras bonecas, vestidos da última moda, cadernos coloridos, papéis de carta perfumados, lápis com tinta brilhante, conjuntinhos de chá de porcelana, fantasias de todos os tipos, livros cheios de figuras, cds (de boa música, é preciso ressaltar).
Não tem culpa. Aliás, se podemos culpar nossa natureza, talvez tenha. E da natureza unida a um meio propício para que a ela demos vazão, um comportamento harmonioso e rijo surge, já cheio de percalços para ser mudado. Lilice gosta de ter e, até então, poucas coisas a impedem de ter o que deseja. Ela acredita que sua personalidade exige muito para estar plena e que, para tanto, deve angariar todos os objetos e utilizar todos os serviços que estão sintonizados com o seu interior. Ou seja, suas atitudes enérgicas demandam uma barbie estilo caratê e suas necessidades sentimentais pedem os cadernos coloridos e os lápis com tinta brilhante, a fim de que o pensamento flua melhor no papel e que, ao lê-lo, todos saibam que foi Lilice que escreveu aquilo, não apenas devido à marcante forma de opinar, mas também à maneira como a idéia se apresenta. Seu quarto deve ser decorado em fundamental simetria com seu eu. Ela deve comer manteiga de amendoim porque identifica-se com as personagens dos filmes americanos que comem manteiga de amendoim. E comprar em uma loja que também venda a distinção de sua individualidade. As coisas são um reflexo de seu ser.
Enfim, ao procurar o conhecimento porque o ama, Lilice não erra em nada, muito pelo contrário, só acerta. Ao ganhar dinheiro com seu conhecimento, também apenas une o útil ao agradável. Ao despejar seu íntimo em tudo que é tangível, ela torna-se uma fortíssima figura de seu tempo, ainda que tal característica seja um sentimento humano bastante enraizado, que apenas se mostra mais forte nas últimas décadas devido ao contexto econômico e social por que a humanidade passa e para o qual caminha. Mas esta expressão do homem moderno não atinge a todos, como é sabido. E para mim, uma pobre alienada também envolvida pelos valores do consumo e da necessidade de transferir-me para objetos, marcas e serviços, o alcance desta percepção foi triste e inesquecível.
Ao sair de casa carregando um pesado Vade Mecum, um livro de direito civil e uma pilha de xérox, inebriada por toda a beleza do direito, saí do trancado universo claro e perfeito das leis, bem vestida, branca e longa, para inserir-me na cena bárbara que corria no terreno baldio ao lado do meu prédio: o que primeiro me chamou a atenção não foram os seres humanos maltrapilhos que sempre estão por ali buscando restos do que comemos e do que usamos, os cadáveres dos objetos para onde transferimos com tanto orgulho e paixão nossas personalidades, mas sim para o rosa claro da porquinha quebrada de Lilice que contrastava com o barro do terreno, com o preto das latas de lixo e com o marrom da pele das duas menininhas, provavelmente tão jovens em idade quanto minha irmã.
Duas abandonadas, descalças, longe do que conhecemos, porque embora seja uma cena comum, é geralmente ignorada e se esvai de nossa memória por não merecer nossa atenção. Duas abandonadas já apaixonadas pelo brinquedo sujo, rosa bebê, quebrado, tão maltrapilho e abandonado quanto elas. Lilice já não o queria. Ele já não atendia aos seus desejos, fora descartado e agora era extremamente amado pelas desconhecidas. Fizeram-se donas da porquinha. O zelador do meu prédio, que fora esvaziar o resto do lixo dos apartamentos no terreno, olhou-as severamente, avaliou a porca e as mandou embora, deixando que levassem o objeto. Elas em nada se importaram por terem sido despejadas de um terreno baldio e fétido, como saíram transbordando uma alegria escandalosa, que Lilice jamais sentiria ao ganhar sessenta reais para mais uma barbie apática que fosse expor na prateleira.
Myriam Gadelha.