quarta-feira, 4 de junho de 2008

A porca de Lilice

Lilice é minha irmã mais nova de oito anos. Não vou defini-la como qualquer menina de sua classe e idade, pois geralmente, Lilice surpreende a todos com tiradas fantásticas e assertivas inteligentes. Acredito que seu pensamento é, inclusive, mais profundo do que ela nos deixa perceber. Outro dia perguntou-me de onde vinha Deus e quanto era o tempo Dele, já que não compreendia como algo podia ter sempre existido, tampouco existir para sempre. A eternidade é, para ela, como para todos, imagino, um conceito infinitamente maior que o alcance da mente humana. Em algum verão, enquanto olhávamos o horizonte lilás pincelado de laranja, Lilice comentou como aquela visão era linda e que, se possuísse o dom de pintar, pintaria aquele cenário estarrecedor. Ela tinha quatro anos à época. Entre suas opiniões políticas, está a de que Juscelino foi o maior presidente do Brasil, visto que Getúlio não passava de um covarde que entregou-se à morte e abandonou seu país. Além de tudo, Lilice possui grande envergadura moral e caráter firme.
Por essas e outras, papai acha minha irmãzinha um ser único e dotado de uma capacidade intelectual além do normal. Assim, resolveu presenteá-la com uma porca para guardar moedas, desde que ela respondesse às perguntas por ele formuladas todas as noites. Como ela estava apta a responder a maioria das questões, as moedas logo foram deixadas de lado e a porquinha rosa de Lilice ganhou cédulas de 10, 20 e 50 reais. Era um estouro. Para estimulá-la ainda mais em sua busca pelo conhecimento, eu e meu irmão Lafa, de dezessete anos, também entramos no jogo disputando o dinheiro. Para minha pequena flor a brincadeira ficou mais difícil: agora, não era necessário apenas que ela respondesse tudo corretamente, era preciso também que eu e Lafa errássemos o que nos era indagado!
A mim, destinavam-se os mais cruéis questionamentos do direito penal e do processo civil, matéria esta última que ainda nem tive o prazer de estudar na faculdade, de forma que havia uma certa trapaça no divertimento,o que garantia à Lilice quase sempre,a vitória. Lafa ficava a cargo de discorrer a respeito de fatos históricos de forma extremamente subjetiva, de rapidamente ter que lembrar a capital do Uzbequistão ou a personalidade de um personagem absurdamente secundário de um livro esquecido. Enfim, Lilice tornava-se, de um jeito ou de outro, a campeã soberana e sua porquinha, por conseguinte, ficava cada vez mais rica e gorda.
No último dia, antes de abrirmos o cofrinho, eu e meu irmão já esgotados e fartos de derrota, decidimos recusar nosso direito de resposta e fazer o êxito de Lilice ainda mais grandioso: assumimos expressamente que não tínhamos a menor chance e que seu embate seria contra seu próprio raciocínio e intelecto, ela seria sua própria rival. Na minha casa, as crianças nunca foram tratadas como crianças e nosso feitio moral foi construído passo a passo através de exercícios como o aqui descrito, além de outras duras pelejas seguidas de penas desenvolvidas com a destinação de criar indivíduos excepcionalmente fortes e irresistíveis às batalhas da vida. Ainda não é sabido se tal método funciona, mas, para mim, o efeito parece ter sido o oposto do esperado, uma vez que me vejo frágil e vulnerável aos humores diários.
Mas bem, voltando, a pergunta foi: em que situação Anne Frank escreveu seu diário? Os olhinhos de Lilice brilharam de emoção e a resposta foi instantânea: ela estava se escondendo de Hitler, que perseguia todos de sua estirpe. Ok, ela não usou estirpe, mas não é fácil saber, à idade de 8 anos, que Hitler buscava todos os judeus para destruir. Mas Lilice sabia. Ela tem um apetite insaciável por conhecimento, talvez mais por natureza, do que pelos estímulos lúdicos de meu pai. A porquinha ganhou mais 20 reais e no dia seguinte,minha irmã esparramou-se no sofá como um velho ganhador de dinheiro, contando cédula por cédula, moeda por moeda e, passados vinte minutos, concluiu que detinha a quantia significativa de seiscentos reais.
Por sermos humildes vencidos, parentes pobres rodeando sua fortuna, fomos agraciados, eu e meu irmão, cada um com cinqüenta reais. Didi, sua babá, recebeu também cinqüenta. O resto, ela decidiu que gastaria no final de semana em Recife, naquele imenso templo do consumo que é o shopping center da capital pernambucana. Agora tenho que falar dos defeitos dessa doce infanta: é uma gastadora nata, uma consumidora cruel, boa vida, ambiciosa e avarenta. Lilice ama o dinheiro e tudo o que ele pode comprar: Barbies e outras bonecas, vestidos da última moda, cadernos coloridos, papéis de carta perfumados, lápis com tinta brilhante, conjuntinhos de chá de porcelana, fantasias de todos os tipos, livros cheios de figuras, cds (de boa música, é preciso ressaltar).
Não tem culpa. Aliás, se podemos culpar nossa natureza, talvez tenha. E da natureza unida a um meio propício para que a ela demos vazão, um comportamento harmonioso e rijo surge, já cheio de percalços para ser mudado. Lilice gosta de ter e, até então, poucas coisas a impedem de ter o que deseja. Ela acredita que sua personalidade exige muito para estar plena e que, para tanto, deve angariar todos os objetos e utilizar todos os serviços que estão sintonizados com o seu interior. Ou seja, suas atitudes enérgicas demandam uma barbie estilo caratê e suas necessidades sentimentais pedem os cadernos coloridos e os lápis com tinta brilhante, a fim de que o pensamento flua melhor no papel e que, ao lê-lo, todos saibam que foi Lilice que escreveu aquilo, não apenas devido à marcante forma de opinar, mas também à maneira como a idéia se apresenta. Seu quarto deve ser decorado em fundamental simetria com seu eu. Ela deve comer manteiga de amendoim porque identifica-se com as personagens dos filmes americanos que comem manteiga de amendoim. E comprar em uma loja que também venda a distinção de sua individualidade. As coisas são um reflexo de seu ser.
Enfim, ao procurar o conhecimento porque o ama, Lilice não erra em nada, muito pelo contrário, só acerta. Ao ganhar dinheiro com seu conhecimento, também apenas une o útil ao agradável. Ao despejar seu íntimo em tudo que é tangível, ela torna-se uma fortíssima figura de seu tempo, ainda que tal característica seja um sentimento humano bastante enraizado, que apenas se mostra mais forte nas últimas décadas devido ao contexto econômico e social por que a humanidade passa e para o qual caminha. Mas esta expressão do homem moderno não atinge a todos, como é sabido. E para mim, uma pobre alienada também envolvida pelos valores do consumo e da necessidade de transferir-me para objetos, marcas e serviços, o alcance desta percepção foi triste e inesquecível.
Ao sair de casa carregando um pesado Vade Mecum, um livro de direito civil e uma pilha de xérox, inebriada por toda a beleza do direito, saí do trancado universo claro e perfeito das leis, bem vestida, branca e longa, para inserir-me na cena bárbara que corria no terreno baldio ao lado do meu prédio: o que primeiro me chamou a atenção não foram os seres humanos maltrapilhos que sempre estão por ali buscando restos do que comemos e do que usamos, os cadáveres dos objetos para onde transferimos com tanto orgulho e paixão nossas personalidades, mas sim para o rosa claro da porquinha quebrada de Lilice que contrastava com o barro do terreno, com o preto das latas de lixo e com o marrom da pele das duas menininhas, provavelmente tão jovens em idade quanto minha irmã.
Duas abandonadas, descalças, longe do que conhecemos, porque embora seja uma cena comum, é geralmente ignorada e se esvai de nossa memória por não merecer nossa atenção. Duas abandonadas já apaixonadas pelo brinquedo sujo, rosa bebê, quebrado, tão maltrapilho e abandonado quanto elas. Lilice já não o queria. Ele já não atendia aos seus desejos, fora descartado e agora era extremamente amado pelas desconhecidas. Fizeram-se donas da porquinha. O zelador do meu prédio, que fora esvaziar o resto do lixo dos apartamentos no terreno, olhou-as severamente, avaliou a porca e as mandou embora, deixando que levassem o objeto. Elas em nada se importaram por terem sido despejadas de um terreno baldio e fétido, como saíram transbordando uma alegria escandalosa, que Lilice jamais sentiria ao ganhar sessenta reais para mais uma barbie apática que fosse expor na prateleira.
Myriam Gadelha.

Nenhum comentário: