sábado, 12 de março de 2011

depoimento de Inaldo

Acabo de receber email de minha prima Fernanda, com um texto escrito pelo jurista Inaldo Rocha Leitão poucos dias após a morte de meu pai.
Fiquei realmente emocionado com o fiel depoimento de uma pessoa que conviveu politicamente com meu pai, ora como aliado, ora como adversário. Devo dizer: na maioria das vezes, foram adversários, mas sempre se admiraram, fato raro na política quente e acirrada da Paraíba, notadamente de Sousa.

Valeu, Inaldo!
Segue o belo texto abaixo:



Salomão, o dono da bola

Por Inaldo Leitão

Uma penca de jogadores de futebol aguardava a chegada de alguém para o inicio da pelada, que ocorreria na rua sem calcamento nas imediações da Casa Grande do clã Gadelha, em Sousa. Devia ser meados dos anos 60 – e eu estava lá. Eis que aparece um garoto paramentado (naquele tempo era rara a existência de terno de futebol) e com uma bola de couro novinha acomodada sob o braço direito. Com pose de dono do pedaço, o dito cujo se dirigiu ao centro do campo e escalou os jogadores dos dois times, incluindo o próprio, como titular absoluto, e reservando-se o direito de fazer o rodízio com os jogadores que sobraram. Esse garoto respondia pelo nome de Salomão e era o dono da bola – e do time, portanto. Melhor dizendo, dos dois times.

Uma banda da cidade esperava as ordens de um certo cidadão que escalaria o time de políticos que disputariam as eleições em Sousa, sejam as municipais ou estaduais. Reunião na Casa Grande, expectativa em todos os recantos da cidade. O Chefe sabia que jamais poderia fugir de uma regra: o time teria de ter um parente no principal lugar da chapa. De preferência um filho. Não diria necessariamente pelo parentesco, mas o fato é que eram muitos os vocacionados para a arte da política. Principalmente os rebentos que, além de inteligentes e com formação acadêmica, eram brilhantes oradores. Feita a escalação, não havia contestação. E o time seguia para o embate eleitoral à cata dos votos. Esse Chefe respondia pelo nome de José, o dono do palanque – e do time de políticos.

Salomão Benevides Gadelha, o garoto-jogador-dono do time de futebol, era o filho mais novo de José de Paiva Gadelha, o chefe-jogador da política. Cada um no seu papel e no seu tempo, pai e filho se confundiam em muita coisa. Inovadores, craques na polêmica, criativos, ousados, visionários, radicais nas posições, inteligentíssimos e outras coisas mais, a presença dos dois em qualquer ambiente fazia a diferença. Não havia como não notá-los. Quando José se foi, numa noite de novembro de 1981, ate seus adversários mais ferrenhos, como eu, sentiram sua falta. A política, especialmente a de Sousa, perdeu muito de sua alegria, de seu entusiasmo e até mesmo de suas palavras atrevidas. Quando Salomão partiu no dia 25 último, curiosamente também numa noite de novembro, o mesmo buraco negro foi produzido. Nem as lágrimas do mundo inteiro, muito menos as dos sousenses, seriam capazes de preencher o vazio deixado pela dupla.

Minha proximidade com Salomão ocorreu na Universidade Católica de Pernambuco, no Recife. Eu estava a caminho da conclusão do curso de Direito quando ele iniciou sua jornada. Coube-me a tarefa de trazê-lo no movimento estudantil, o que era proibido pela ditadura militar, à época sob o comando do general-presidente Ernesto Geisel. Expliquei-lhe que o movimento era arriscado, quase clandestino, o que o animou ainda mais. Apresentei-lhe Raul Jungman, que anos depois seria deputado federal e na ocasião comunista, e outras lideranças estudantis. Nossa luta era pela reabertura dos diretórios acadêmicos, afinal vitoriosa em 1977. Como eu estava impedido de disputar a presidência do DA de direito, por ser concluinte, indiquei Salomão, que foi eleito com expressiva votação.

Seu discurso era mais radical do que os militantes estudantis vinculados ao Partido Comunista Brasileiro. O discurso básico incluía a revogação do AI-5 e do Decreto-lei 477; anistia ampla, geral e irrestrita; restabelecimento das eleições diretas para todos os níveis; restauração das liberdades públicas; extinção da censura; convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte; e o fim do regime militar. Com o ambiente político no país ainda turvo, todos tratavam desses temas de forma um tanto contida – menos Salomão que, com sua retumbante retórica, incendiava o auditório. O estudante rebelde se fez advogado e refez o caminho para Sousa, sucedendo o pai na Algodoeira Gadelha. A chegada do bicudo devastou os campos de algodão na região e inviabilizou essa atividade do final dos anos 80 até os dias atuais. A quebradeira foi geral. Nem a multinacional Sanbra segurou o tranco.

Sem a Usina, o hiperativo Salomão viveu seus momentos de instabilidade profissional. Passou um período como vogal da Justiça do Trabalho, depois ensaiou uns passos como advogado, ocupou espaço na FIEP do irmão Buega Gadelha, até se defrontar com aquilo que realmente fervia nas suas veias – a política. Já fora do prazo limite da convenção municipal para escolha dos candidatos na eleição de 2000, Marcondes Gadelha formou uma chapa dita provisória com o irmão Salomão candidato a prefeito, tendo Leonardo, seu filho, na vice. Puro sangue. O que parecia uma piada logo se transformou em coisa séria.

Salomão fez uma campanha, digamos, pirotécnica. Chegava ao palanque de moto-táxi e um arsenal de fogos ensurdecedor espocava nos céus de Sousa. Barulhento, incansável e esbanjando seu natural otimismo, aliou sua estratégia eleitoral ao capital político que a família Gadelha sempre teve e tem para, no final, também beneficiado pela divisão do marizismo, polarizar a disputa com João Estrela e jogar o candidato Lúcio Matos para a lanterna. Mesmo derrotado, Salomão foi buscar na Justiça o que não conseguiu nas urnas. Dois anos de litígio depois, empunhou o diploma de prefeito, deferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, e pavimentou o caminho para a conquista do segundo mandato na eleição de 2004. Fez história. Depois das tentativas de Marcondes, Raimundo Doca e Buega, era a primeira vez que um filho de Zé Gadelha governava a terra de Bento Freire.

Salomão disputou sua última eleição em 2010 como candidato e deputado estadual. Fez uma campanha tão desastrosa quanto divertida. Sem apoio da família, que já havia fechado com o primo André, e abandonado pelos ex-auxiliares da prefeitura, ficou sem palanque e apelou, como sempre, para a criatividade – e inventou o comício do tamborete. Espalhava o popular objeto em determinado bairro e recorria a uma dupla de excelentes oradores para atrair a multidão – ele mesmo e a filha Maria Alice. Os eventos, sucesso de público, contrastaram com o péssimo resultado das urnas.

Derrotado, era natural que Salomão ficasse chateado com a cidade que governara por seis anos e que lhe dera uma votação pífia. Que nada. O prefeito que desafiou a Cagepa, criando a empresa municipal de água e esgoto, e recorreu à energia solar para expulsar da cidade a também impopular Energisa, deixou de lado a tristeza eleitoral e envergou sem trégua alguma outra bandeira, a do petróleo. Foi animado por esse novo objetivo que Salomão tomou o caminho de Sousa para fermentar o debate sobre uma alternativa de riqueza para a região. Não deu tempo. Antes de Sousa, havia uma pedra no meio do caminho, Pombal. Foi ali que Salomão interrompeu seus incontáveis sonhos e, como disse Getúlio Vargas, saiu da vida para entrar na história.






quarta-feira, 9 de março de 2011

Seus óculos


Eu achei seus óculos hoje, esquecidos no porta luvas do meu carro, assim, descuidadamente esquecidos. Mas estavam lá, para que você deles fizesse uso, rapidamente, como de costume, a fim de ler pequenas anotações antes de uma audiência, de uma palestra, de um discurso. Já que você não volta, já não entrará no meu carro. Tirei-os de lá e coloquei sobre a minha cabeceira e agora os encaro estática.

Tentei ver por trás deles, como se procurasse arfante ver através dos seus olhos, e ser você um pouco. E sendo você, abrandar a minha saudade. Óbvio que minha visão ficou apenas embaçada, e nenhuma licença poética respeitou meu imenso e verdadeiro sofrimento. Quisera eu fosse apenas poesia, a perda. Como em tantas e tantas músicas de amores perdidos, quisera eu, fosse apenas poesia. Eu tiraria seus óculos, sem rosto úmido, os devolveria para você como numa brincadeira, como nos meus teatros, lembra? E você bateria palmas.

Não é tão simples assim. Claro que não. Esse cenário de dor vibrante repleto de objetos que mais parecem personagens. Amantes tristes e voluntariosos. Utópicos. Não é um cenário de teatro, as cortinas não fecham e nós voltamos para a coxia sorridentes, sem ansiedade e nem tormento. Ah, não. Ainda que eu deseje enormemente um faz de contas – e às vezes eu até ensaio, sabe? – na coxia a agonia é ainda maior.

Foi com seus óculos que fiz esse faz de conta hoje. Coloquei na face, e ri despretensiosa, querendo tão somente uma nostalgia tranqüila, daquela forma que acontece quando as lembranças boas são reconfortantes, e não destruidoras do cotidiano. Porque é mais fácil se ferir do que fazer cócegas em si mesmo. Esse tempo do faz de contas, do teatro, vai demorar a chegar. E, quando chegar, bem, não será mais teatro. Não vou precisar encenar nada para lograr meu desespero.

Hoje não vou tomar minhas pílulas de dormir. Meu psiquiatra não me poupa de ansiolíticos e hipnóticos. É um homem muito bom. Poupa-me do sofrimento. Assim, eu não preciso enfrentar noites turbulentas, virando de um lado para outro na cama, sem conseguir me concentrar em nenhuma leitura até que o sono chegue naturalmente. Em contrapartida, pouco me recordo dos meus sonhos.

Acontece que, você bem sabe, nos dias de hoje, embora a vida tenha ficado mais longa – perdoe-me esse clichê que também não me apraz – a pressa é cada vez maior. Então não há espaço para noites insones, não há espaço para sofrer. E, ainda que tivéssemos, não creio que em momento nenhum, nos mais imemoriais dos tempos, tenha existido espaço no espírito humano para tamanho pesar. Por isso seu avô morreu de banzo, você dizia, não havia benzodiazepínicos! Por isso Van Gogh cortou a orelha. Por isso eu não vou morrer de banzo, nem amputar algum membro exterior como uma espécie de somatização voluntária que mostre o quanto amputada de alma estou. Ainda tenho a sertralina e minhas miúdas encenações. Além do mais, acessos de surto não é um luxo ao qual pode se dar a classe média.

No espetáculo de hoje, deixei seus óculos sobre a minha cabeceira. Infelizmente, minha miopia só me permite vê-los através dos meus próprios óculos. Devo interpretar a mim mesma. Interpreto uma amante serena, que observa os pertences do amado com aparente lucidez, como quem precisa apenas de uma lembrança por perto. Mas, claro, é mera interpretação. Na coxia, revelo-me doente e alucinada. Acalmo-me com divinos fármacos. Ainda assim, dentro do alívio efêmero da droga, murmuro para mim mesma que deixo seus óculos na cabeceira, porque espero confiante você voltar. 

M.