domingo, 30 de outubro de 2011

Três

São 3h e a cidade é uma calmaria. Minha cabeça, ao contrário, é um caos só. Melancólico com suas variantes de caos ímpares, mas é, sim, uma desorganização total. Porque é muito estranho saber que uma rede é só uma rede e os tempos já são tão distantes, os bons momentos menos assíduos em sua chegada e o sorriso mais ligeiro em sua partida. Eu nem te conheço o bastante mais, para saber identificar voz, tato ou um mero conselho, contudo eu ainda paro e escrevo depois de meses penando por isso.
São quase 3h, na verdade. Eu escuto uma canção que nada diz, só que as notas são aprazíveis aos meus ouvidos, é um samba altamente gostoso, contudo fica no vácuo a semântica mais profunda, e, pra mim, isso é necessariamente o que interessa, pelo menos, neste tão constante momento, entre idas e vindas de ais e pousos de mais rugas. A peleja caleja, amigos... Dá pra se entender o dito paterno do quanto os suor é significante, é resultado e não mera transpiração orgânica.
Já se avizinha o nascer do sol, e eu insisto em não deitar. O sono pode até bater, mas a porta não se abre, porque já dizia eu mesmo, numa descoberta no carbureto, que dormir é ruim, bom é viver. Por isso, descansarei um pouco e acordarei já cedo. Ora, deve ter tapioca na mesa! A morte tanto é iminente como eminente angústia na vida das pessoas, não pelo fato, mas, como diz um amigo meu, pelo modus operandi, logo viver é estar distante da morte.
Isso foi muito bom: é um ponto de partida interessante para "uma ode ao mictório" e "ainda vou desmascarar o avião".
E vão por mim: cobertura de chocolate só é bom sobre sorvete de morango. O inverso não é verdadeiro.
São mais de 3h.


L.
João Pessoa, 31 de Outubro de 2011

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tri


TRI 

Por José de Paiva Gadelha Neto 

Minha relação com o Flamengo sempre foi meio louca mesmo. Me lembro
bem, quando criança, todos da minha idade sonhavam em conhecer a
Disneyworld, se empolgavam ao falar do desejo de brincar na montanha
russa, conhecer o Mickey Mouse, sei lá o que. Eu só queria saber de
conhecer o Maracanã.

Meu pai, um rubro-negro apaixonado, achava isso o máximo e sempre me
apresentava aos amigos dizendo: “Esse é meu filho, Flamenguista, ano
que vem vou levá-lo para conhecer a Gávea e o Maracanã”. As passagens
de avião não eram baratas como hoje, e nós morávamos a quase 3 mil
quilômetros do Rio de Janeiro, além disso, meu pai temia a violência
também.

Com internet, TV por assinatura, Pay-Per-View, as informações são
abundantes e é possível ter notícias em tempo real e assistir todos os
jogos do mais querido, mas quem tem mais de trinta sabe da dificuldade
que era acompanhar notícias e jogos naquela época. Sabia apenas do
horário dos jogos, então, quando faltavam 15 minutos para o início dos
jogos, subia em cima do telhado da casa, acompanhado do meu velho
rádio. Passava aquelas 2 horas com o dedo no tuning do rádio, mexendo
para cima e para baixo, sem sucesso. Existia uma lenda que dizia que as
ondas da Rádio Globo caiam na cidade de Sousa, na Paraíba, onde eu
morava. Bom, chamo de lenda porque no período do jogo, eu escutava a
voz de José Carlos Araújo umas 3 vezes de 4 segundos cada, e claro, era
uma vibração: “Escutei, escutei”. Quando passavam as 2 horas, eu não
sabia patavinas do que tinha se passado no jogo, não tinha outra
alternativa a não ser telefonar para o Flamengo, saber o placar do jogo e
esperar o compacto na Bandeirantes. Também cansei de assistir esses
compactos e vibrar como se estivesse vendo o jogo ao vivo, afinal, não
tinha idéia do placar. Meu pai, claro, achava o máximo.

O tempo passou, fomos morar em João Pessoa em 1995. Agora já existia a
Globosat, e a Sportv já mostrava alguns jogos do Flamengo. Um cara, dono
de um trailerzinho lá no centro da cidade, passou a exibir os jogos e
aquela novidade tomou conta da cidade inteira, o negócio tomou uma
proporção tão grande que na final da Taça Guanabara de 1996, fora
necessário fechar a rua e instalar um telão, para os milhares de rubronegros
que lá foram ver o show de Romário, Sávio e Cia.

Não demorou para os bares da cidade notarem o que mais tarde viraria
um bordão entre os empresários: “jogo do Flamengo lota”. Meu pai
adorou a idéia. Agora poderia ver todos os jogos, acompanhado de um
whiskyzinho, no conforto de um bar e ao meu lado. Só não posso mais
dizer que ele achava o máximo, porque agora ele tinha que conter os
meus excessos oriundos do fanatismo que, por sinal, tinha sido inserido
em mim por ele.

E assim ficou a rotina: Jogo do Flamengo, cachaça e promessa de que no
próximo ano vamos ao Maraca. Meu sonho ainda não tinha se realizado.
Veio a série do tri e na festa do Bi-campeonato, lá na calçadinha de
Manaíra, local das festas do Mengão em João Pessoa, ele me disse: Ano
que vem a gente vai de todo jeito.

É... meu pai não chegou no “ano que vem”. Em novembro de 2000 ele foi
morar com papai do céu. Foi levar a alegria de ser rubro-negro aos céus,
pois a alegria foi o que regeu a vida de Doca Gadelha inteira e eu me
recuso a falar dele com tristeza.

Eu completaria 22 anos em março e só quem já passou por isso sabe o que
são os primeiros meses de uma perda dessa natureza. Foi então que o
Mengão cumpre sua rotina e se classifica para a final do Carioca de 2001 e
ao serem divulgadas as datas dos jogos, surgiu uma promoção, que hoje
pode parecer bobagem, mas na época não era uma coisa comum, ela
dizia: “ Passagem ida e volta, hotel, traslado e ingresso por apenas R$
900,00, parcelado em 6 vezes”. Eu não podia acreditar, tinha chegado a
hora, eu ia conhecer o Maracanã, o sonho que eu tinha desde os 5, 6 anos
de idade estava prestes a se realizar.

Imediatamente liguei para Guto, um amigo de infância tão louco pelo
Flamengo quanto eu, e quando dei notícia da promoção ele respondeu
perguntando: “qual o número da sua conta para eu depositar o
dinheiro?”. Saí correndo para a agência e fui o primeiro a comprar o
pacote. Fui o primeiro de sete pessoas. É, você leu certo, apenas sete
pessoas compraram o pacote, as sete pessoas que não suportaram a
ansiedade e procuraram a agência antes do primeiro jogo.

Os caras ganharam o primeiro jogo, tínhamos que ganhar por dois gols de
diferença e a viagem estava paga. O que fazer? Vou ao Maracanã pela
primeira vez pra perder? O Flamengo vai ser vice depois de dois títulos em
cima do maior rival?

Liguei para Guto e perguntei a ele se ele queria desistir. Confesso que nós
dois não acreditávamos muito, mas como já estava pago, a viagem não
poderia deixar de ocorrer.

Aproveitei que estava dentro do avião, portanto mais perto de Deus e fiz
uma promessa de passar seis meses sem tomar refrigerante se voltasse de
lá tri-campeão. Se estiveres perguntando porque não fiz pra passar esse
tempo sem cerveja, respondo dizendo que a promessa começaria a ser
cumprida logo após o jogo. Como eu iria comemorar? Sem cerveja? Sem
chance.

Chegando no Rio o grande grupo de sete pessoas foi fazer os passeios
tradicionais, Pão-de-açúcar, Corcovado, praias, e claro, a Gávea.
Amigo, hoje tenho uma filha e vejo a reação dela quando chega em um
parque de diversões, corre de um lado para o outro, quer andar em todos
os brinquedos de uma só vez. Eu estava igual. Queria estar na sala de
troféus, no campo de treino, no ginásio, na piscina e na Flaboutique ao
mesmo tempo. Claro que comprei a loja toda, né?

Era sábado, estava anoitecendo e ainda não tinha conseguido tirar
nenhuma foto com nenhum jogador e no local que eu estava aguardando
os jogadores saírem do vestiário só tinha um carrão que eu não tinha idéia
de quem era, foi então que aparecem dois jogadores, o dono do carro era
o melhor do time, o Pet e o carona era o pior, o Maurinho. Fiquei nervoso
na hora, quase derrubo a câmera, mas desnecessariamente, pois os dois
foram bastante solícitos e ao nos despedirmos, disse a ele que tinha vindo
da Paraíba só assistir ao jogo e queria aquele título. Ele respondeu com o
sotaque carregado que lhe é peculiar: “Famo vê”, traduzindo, “Vamos
ver”. Aquela noite eu não dormi, passei a noite virando na cama do hotel e
dizer que estava ansioso é pouco, eu estava beirando a loucura.

Chegou o dia, era época de apagão e o jogo começava ás 15h, chegamos
ao Maracanã ao meio-dia. Que coisa linda, aquela imensidão, que eu
achava que conhecia pela televisão, era mais lindo do que eu poderia
imaginar. Totalmente vazio, eu cheguei a duvidar que todos os espaços
pudessem ser ocupados três horas depois. Nossos ingressos eram para as
cadeiras brancas, que ficava em uma posição onde se via o jogo de frente.
Mas o dia era de perfeição, não podia faltar nada. Olhei de lado e Guto já
estava chorando, então lhe disse: “Vamos para a Raça!!!” O cara topou
sem pensar e lá fomos nós.

A Raça é a maior torcida organizada do Flamengo e ficava reunida atrás do
gol nas cadeiras verdes. Lá estávamos. Medo da violência? Meu amigo, a
emoção que se sente ali só pode ser comparada ao nascimento de um
filho. Você não pensa em outra coisa. É o tipo da coisa que o cara não tem
o direito de morrer antes de sentir.

Começa o jogo e a tensão que sentia naquele instante é algo inexplicável,
me sentia meio que responsável em levar aquela taça para a Paraíba.
Termina o primeiro tempo, no placar 1x1. No intervalo o clima na
magnética era de velório, galera cabisbaixa, triste. O time volta a campo e
com ele volta também o fervor da nação. Comparo aquela reação com a
de uma mãe que está triste por alguma coisa, mas quando vê um filho se
refaz para não deixar o filho preocupado e/ou entristecido.
Edilson marca um gol de cabeça e aí as esperanças ressurgem, posso até
confessar que de forma tímida, apesar de acreditar, já passava dos
quarenta minutos e naquele momento estava naquela de me autoconformar.

Pensava mais ou menos assim: “Vamos ganhar o jogo, não vou
sair daqui com o título, mas já ganhei dois deles, tá bom”. Mas como já
disse, amigo, aquele era dia de perfeição. Edílson sofre uma falta e aquele
cara que eu tinha falado no dia anterior ajeita a bola para bater. Olho para
trás e pergunto a um cara que estava marcando o tempo em quanto
estava e ele responde, 42. Pensei: é agora! Estava quase atrás do gol e o
cara manda o chinelo... O curioso é o que ocorreu em uma fração de
segundo. Do local que eu estava não vi a bola entrar mas escutei a galera
gritar, e imediatamente, vi a bola cair dentro gol. Não sei se reparam, mas
aquela bola não balançou muito a rede.

Meu irmão, foi a maior incidência de loucos por metro quadrado que eu já
vi na minha vida, gente chorando, passando mal, desmaiando. Se você que
esta lendo isso não é Flamengo jamais vai entender esse sentimento,
quem é Flamengo sabe do que eu estou falando. Meu sonho estava
realizado de uma forma que nem eu sonhava, foi tudo perfeito, foi tudo
além. Independente de religião, fica difícil acreditar que meu pai não tem
nada haver com isso.

Hoje é dia 27/05/2011, ou seja, aniversário de dez anos do tri-campeonato
e da minha estréia no Maracanã (fui mais três vezes depois). Também faz
dez anos que meu pai nos deixou e os dois acontecimentos me dão a
sensação de terem acontecido ontem.

Meu pai me prometeu que estaria, DE QUALQUER FORMA, comigo em
2001 no Maracanã, tenho certeza que ele estava. Meu pai morreu sem
saber que resolvi seguir a sua profissão, tenho certeza que ele sabe.

JOSÉ DE PAIVA GADELHA NETO

terça-feira, 12 de abril de 2011

Virei palmeirense!


Quando mamãe ficou grávida de Lafa, meu pai, com medo que eu me acometesse de um ciúme brabo que é praga forte na família, comprou um filme de vídeo cassete e colocava todos os dias para eu ver e ouvir. Eu cantarolava feliz os versinhos de “temos um novo irmãozinho, papai e mamãe dão muito carinho, nada melhor podia ter acontecido”, e todos acharam que estava tudo muito resolvido.

Nada feito. Nove meses depois chegou o meu irmãozinho, gordo como uma bola, mais vesgo impossível, orelhas maiores do que sua cabeça. Não fosse tão gordo, daria a idéia de serem asas. Se tivessem escolhido o nome na hora, eu desconfiaria que a razão tinha sido o tamanho das orelhas do menino, iguaizinhas as de Vovô Lafayette. Achei tão feio, tão feio, que não compreendi o estardalhaço de toda aquela gente em cima do bebê. Mas mamãe estava feliz demais, e acharam injustiça dizer que ele era horrendo. Até vovó e Tio Dalton, habitualmente muito sinceros, viraram juntos várias latinhas de cerveja antes de proferirem o veredicto: ele não é desse mundo, Aline! Parece Pirrita.

Demorou um tempo até notarem que eu, até então a dona do pedaço, linda e loira como uma boneca de porcelana no auge do meu um ano e meio de idade, estava ali estatelada e esquecida, e me convidarem para acariciar a coisa. Já estava indignada. Afinal, papai nunca me deixava pra trás por nada no mundo. Dizia constantemente que eu era a mocinha mais bela do planeta, que, às vezes, virava os olhos de mim com medo de colocar olhado, de tão bonita que me achava. Ultrajada é que me dispus a chegar perto de Lafa. De mansinho, fui alisando a cabecinha dele e balbuciando “ó, meu irmãozinho, fofinho...” e, de repente, sem notar, já tinha arrancado um tufo dos ralos cabelos loiros do neném naquele falacioso gesto de carinho.

Sabia que estava encrencada. A confusão foi grande, ele berrava alto e eu corri o mais longe que pude pelos corredores do hospital. Papai me alcançou e perguntou se eu não lembrava da musiquinha. Eu não sabia dizer, mas achava mesmo era que nada pior podia ter acontecido. Mal sabia que o pior ainda estava por vir, quando voltamos pra Sousa (sabe lá porque cargas d’água Lafa foi nascer em Campina). Muitos tufos de cabelo arrancados e muito choro de Vovó por causa da minha maldade sem precedentes com aquela criatura ingênua, até eu perceber que não tinha jeito. Precisava me aliar.

Não importava se eu era bem mais bonita que ele, éramos igualmente tratados. Claro, eu continuei achando absurdo. Mas resolvi aproveitar o admirável mundo novo. E, lentamente, descobri que um vesguinho gordo com orelhas de abano viria a ser o meu melhor amigo, desde a mais tenra idade.

Ele se encantou comigo desde que se entendeu por gente. Logo quando aprendeu a emitir os primeiros sons, sem saber falar Myriam direito, saía gritando pela casa: Iáá, Iáá. E até hoje me chama de Iaiá. Acho que ele já sabe dizer Myriam, mas ainda chama Iaiá.

À tardinha, íamos à praça e eu brigava com quem o chamasse de zarolho, ainda que eu mesmo chamasse, dentro de casa, só entre nós dois. Ficava em casa com ele quando ele tinha que usar aquele tampão horrível em um olho só, que eu nunca entendi pra que servia. Brinquei de Jaspion, Power Rangers e Jiraya, e nem achava um tédio. Tivemos um vizinho meio psicopata que o obrigava a ficar horas no sol quente se ele errasse um passe de futebol. Quando eu descobri, o psicopata, que hoje é nosso amigo, levou uma surra da qual nunca vai se esquecer.

Meus amigos eram amigos dele e vice-versa. Viemos morar em João Pessoa. Tínhamos uma gangue enorme que explorava as casas de veraneio abandonadas durante o inverno em camboinha. Eu, Lu, Leo, Deló, Luquinhas, Bruninha e Lafa. À noite, mamãe e papai tomavam vinho na beira da praia enquanto nós dois esperávamos juntos as redes de pescadores aportarem na areia para pegarmos os peixinhos menores, ou ficávamos correndo com nossas cadelas. A dele, Duda, a minha, Lara.

Eu gostava de tudo nele. Tudo era divertido, ainda que estivéssemos apenas os dois. Eu achava graça e me aproveitava de quando ele não queria ir a um lugar (e eu também não), tirava toda a roupa e corria gritando pela casa: só vou se for nu! Ele ficava comigo quando eu adoecia, e não contava pra mamãe se eu fazia uma trela. Foi ele que escondeu meu primeiro beijo, com um primo, na frente da antiga casa de Lindolfo Pires, encostada numa árvore. Não contou a ninguém. Mas eu dedurei o primeiro seis que ele tirou em matemática. Foi ele que jogou trinta partidas de xadrez comigo, quando eu acabei o meu primeiro namoro e só me distraía com aquilo. Foi ele que me ensinou a usar vírgulas e melhorar as minhas redações, já que Zarinha agraciava as dele, quase sempre expostas na parede da recepção do cursinho, com um “Quase Perfeito”. Também foi ele que me ensinou física do primeiro ano, quando eu já estava no terceiro. Eu lhe ensinei a cantar o Hino Nacional, porque nós adorávamos cantar juntos e, quando ele largou a bateria e o rock, pelo violão e a igreja e virou um crente fanático, o Hino era a única música que podíamos cantar juntos - as outras eram mundanas. Nem a religião foi um entrave entre nós. Ele tentava me converter, e eu também tentava convertê-lo. Acabou que ele mesmo deixou aquele fanatismo exacerbado, depois de ler a Bíblia duas vezes, saliente-se, e até começou a considerar que eu pudesse ir para o céu, mesmo dizendo “caralho”, de vez em quando.

Eu atualizei-o dos novos palavrões e das novas velhas músicas, e viramos nós dois fãs de Beatles, Belchior, Bob Dylan, Novos Baianos. Temos um repertório imenso. Cultuamos a revolução e os comunistas. Hoje, nos decidimos pelo capitalismo humanista. Mas ainda temos blusas com a fotografia de Che com os dizeres: ele está morto, faça sua revolução. E ainda acreditamos na revolução, ao nosso modo. Juntos fizemos esse pacto, de fazer a revolução, meio que bêbados, num barzinho na Lapa, quando descobrimos juntos o Rio de Janeiro. E vamos fazer.

Até hoje, só houve um empecilho entre nós. Em 1995, o monstro verde chegou de súbito para abalar as estruturas de nossa linda amizade. Onze homens, todos vestidos de verde, em um gramado verde, com o nome Parmalat nas costas começaram a assombrar minhas quartas-feiras e meus domingos. Lafayette se apaixonou pela primeira vez. O nome dele era Palmeiras, e eu detestava tanto aquele time que voltei a arrancar os cabelos do meu irmão de novo. Beliscava-o no meio do jogo, desligava a televisão, e, como nada adiantou, tomei uma séria decisão: virei corinthiana.

Ele já não era mais tão menor que eu, então a tapa rolava solta. Também perdi cabelos, e um abajur de peninhas, que ele depenou, uma a uma, na final da libertadores de 2000. Eu liguei o som nas alturas com o hino do timão e pulei serelepe pela sala. Ele trancou-se no meu quarto, usou um batom de mamãe para escrever um gigantesco “gorda” no meu espelho e, feito isso, depenou o meu lindo abajurzinho cor de rosa.

Muitas brigas viriam. Papai, achando absurdo o meu comportamento, adotou o Palmeiras como seu primeiro time (antigamente, como não havia campeonato brasileiro, era possível ter um time em cada estado, de modo que meu pai era flamenguista no Rio e Palmeirense em São Paulo, mas, flamenguista, depois que veio o Brasileirão e similares). Lilice nasceu já palmeirense. Eu insistia no meu Corinthians, porque, até a chegada do Palmeiras, nada havia me separado tanto do meu irmão. Não fui tão esperta como quando ele nasceu: em vez de aliar-me, resolvi bater chapa. Bobinha. Passei domingos em crise nervosa ao ouvir os gritos de gol, abandonada no meu quarto, sem companhia. Não me veio a idéia de que poderia estar com ele, comendo uma pipoca e, anos mais tarde, tomando uma cervejinha, os dois vestidos de verde.

O tempo passou, o Palmeiras continua sendo o grande amor da vida de Lafa, depois de Keoma, claro, sua namorada, de quem também me fiz aliada, grande amiga e até incluí-a nos nossos planos revolucionários. Ela topou sem pestanejar. Hoje somos três. Aliás, quatro. Há o nosso fiel escudeiro Iarley Maia, também um sonhador. E, como bem disse John Lennon, espero que um dia mais gente se junte a nós. Lafa ainda é o meu melhor amigo, e ninguém no mundo me completa como ele. Completa, ama, agüenta. Ninguém me diverte como ele. E eu não admiro ninguém como admiro meu irmãozinho. Não porque ele deixou de ser vesgo (tá até voltando a ser, inclusive), emagreceu, não tem mais orelhas de abano e é um gato. Mas porque ele é companheiro, inteligente, engraçado, um excelente cantor, futuro grande jurista e, sobretudo, porque é muito, muito solidário. De um altruísmo inigualável. Dizem que puxou ao meu bisavô Tozinho, que chegou a dar de presente um cartório que tinha. Nem me atrevo a dizer que sou assim. Por isso, coloco Lafa em um pedestal.

Não foi depois que meus pais morreram que aprendemos a tomar conta um do outro. Foi sempre assim, já que, quando eu tinha 12 e ele 10, passamos a morar sozinhos em João Pessoa. Outro dia tive pneumonia. De novo, Lafa não saiu do meu lado, sabia direitinho a hora de dar o meu antibiótico e o xarope. Tomou uma xícara de sorvete da minha mão, enquanto eu tentava traçá-la escondido. Aí eu me dei conta de que um erro, mesmo que tenha sido cometido, ininterruptamente, por quase quinze anos, ainda pode ser consertado. Que o Palmeiras nunca poderia nos separar, nem antes, nem hoje. E já que ele saiu na frente escolhendo seu time do peito, não tenho motivos para pedir para que ele seja corinthiano. 

Faço, agora, o Palmeiras o time do meu coração. Escolho, de hoje em diante, domingos e quartas-feiras menos solitárias. Escolho um time que ganhou a libertadores (um tanto oportunista, este argumento, ok). Acho que nunca fui corinthiana de verdade. Quando o Palmeiras perdia e Lafa ainda era pequeno, chorava muito. No fundo, bem, bem no fundo mesmo, eu ficava triste porque ele estava triste.

Através desse texto deixo o comunicado. Virei a casaca. Tive que fazer uso de muita emoção,é verdade. Porque, mesmo sendo muito altruísta, Lafa nunca vai perder a oportunidade de, ao saber da novidade, dar uns petelecos na minha cabeça e dizer divertido: E aí, o verdão é ou não é o melhor? Dá-lhe porco, dá-lhe porco!


M. 




sábado, 12 de março de 2011

depoimento de Inaldo

Acabo de receber email de minha prima Fernanda, com um texto escrito pelo jurista Inaldo Rocha Leitão poucos dias após a morte de meu pai.
Fiquei realmente emocionado com o fiel depoimento de uma pessoa que conviveu politicamente com meu pai, ora como aliado, ora como adversário. Devo dizer: na maioria das vezes, foram adversários, mas sempre se admiraram, fato raro na política quente e acirrada da Paraíba, notadamente de Sousa.

Valeu, Inaldo!
Segue o belo texto abaixo:



Salomão, o dono da bola

Por Inaldo Leitão

Uma penca de jogadores de futebol aguardava a chegada de alguém para o inicio da pelada, que ocorreria na rua sem calcamento nas imediações da Casa Grande do clã Gadelha, em Sousa. Devia ser meados dos anos 60 – e eu estava lá. Eis que aparece um garoto paramentado (naquele tempo era rara a existência de terno de futebol) e com uma bola de couro novinha acomodada sob o braço direito. Com pose de dono do pedaço, o dito cujo se dirigiu ao centro do campo e escalou os jogadores dos dois times, incluindo o próprio, como titular absoluto, e reservando-se o direito de fazer o rodízio com os jogadores que sobraram. Esse garoto respondia pelo nome de Salomão e era o dono da bola – e do time, portanto. Melhor dizendo, dos dois times.

Uma banda da cidade esperava as ordens de um certo cidadão que escalaria o time de políticos que disputariam as eleições em Sousa, sejam as municipais ou estaduais. Reunião na Casa Grande, expectativa em todos os recantos da cidade. O Chefe sabia que jamais poderia fugir de uma regra: o time teria de ter um parente no principal lugar da chapa. De preferência um filho. Não diria necessariamente pelo parentesco, mas o fato é que eram muitos os vocacionados para a arte da política. Principalmente os rebentos que, além de inteligentes e com formação acadêmica, eram brilhantes oradores. Feita a escalação, não havia contestação. E o time seguia para o embate eleitoral à cata dos votos. Esse Chefe respondia pelo nome de José, o dono do palanque – e do time de políticos.

Salomão Benevides Gadelha, o garoto-jogador-dono do time de futebol, era o filho mais novo de José de Paiva Gadelha, o chefe-jogador da política. Cada um no seu papel e no seu tempo, pai e filho se confundiam em muita coisa. Inovadores, craques na polêmica, criativos, ousados, visionários, radicais nas posições, inteligentíssimos e outras coisas mais, a presença dos dois em qualquer ambiente fazia a diferença. Não havia como não notá-los. Quando José se foi, numa noite de novembro de 1981, ate seus adversários mais ferrenhos, como eu, sentiram sua falta. A política, especialmente a de Sousa, perdeu muito de sua alegria, de seu entusiasmo e até mesmo de suas palavras atrevidas. Quando Salomão partiu no dia 25 último, curiosamente também numa noite de novembro, o mesmo buraco negro foi produzido. Nem as lágrimas do mundo inteiro, muito menos as dos sousenses, seriam capazes de preencher o vazio deixado pela dupla.

Minha proximidade com Salomão ocorreu na Universidade Católica de Pernambuco, no Recife. Eu estava a caminho da conclusão do curso de Direito quando ele iniciou sua jornada. Coube-me a tarefa de trazê-lo no movimento estudantil, o que era proibido pela ditadura militar, à época sob o comando do general-presidente Ernesto Geisel. Expliquei-lhe que o movimento era arriscado, quase clandestino, o que o animou ainda mais. Apresentei-lhe Raul Jungman, que anos depois seria deputado federal e na ocasião comunista, e outras lideranças estudantis. Nossa luta era pela reabertura dos diretórios acadêmicos, afinal vitoriosa em 1977. Como eu estava impedido de disputar a presidência do DA de direito, por ser concluinte, indiquei Salomão, que foi eleito com expressiva votação.

Seu discurso era mais radical do que os militantes estudantis vinculados ao Partido Comunista Brasileiro. O discurso básico incluía a revogação do AI-5 e do Decreto-lei 477; anistia ampla, geral e irrestrita; restabelecimento das eleições diretas para todos os níveis; restauração das liberdades públicas; extinção da censura; convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte; e o fim do regime militar. Com o ambiente político no país ainda turvo, todos tratavam desses temas de forma um tanto contida – menos Salomão que, com sua retumbante retórica, incendiava o auditório. O estudante rebelde se fez advogado e refez o caminho para Sousa, sucedendo o pai na Algodoeira Gadelha. A chegada do bicudo devastou os campos de algodão na região e inviabilizou essa atividade do final dos anos 80 até os dias atuais. A quebradeira foi geral. Nem a multinacional Sanbra segurou o tranco.

Sem a Usina, o hiperativo Salomão viveu seus momentos de instabilidade profissional. Passou um período como vogal da Justiça do Trabalho, depois ensaiou uns passos como advogado, ocupou espaço na FIEP do irmão Buega Gadelha, até se defrontar com aquilo que realmente fervia nas suas veias – a política. Já fora do prazo limite da convenção municipal para escolha dos candidatos na eleição de 2000, Marcondes Gadelha formou uma chapa dita provisória com o irmão Salomão candidato a prefeito, tendo Leonardo, seu filho, na vice. Puro sangue. O que parecia uma piada logo se transformou em coisa séria.

Salomão fez uma campanha, digamos, pirotécnica. Chegava ao palanque de moto-táxi e um arsenal de fogos ensurdecedor espocava nos céus de Sousa. Barulhento, incansável e esbanjando seu natural otimismo, aliou sua estratégia eleitoral ao capital político que a família Gadelha sempre teve e tem para, no final, também beneficiado pela divisão do marizismo, polarizar a disputa com João Estrela e jogar o candidato Lúcio Matos para a lanterna. Mesmo derrotado, Salomão foi buscar na Justiça o que não conseguiu nas urnas. Dois anos de litígio depois, empunhou o diploma de prefeito, deferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, e pavimentou o caminho para a conquista do segundo mandato na eleição de 2004. Fez história. Depois das tentativas de Marcondes, Raimundo Doca e Buega, era a primeira vez que um filho de Zé Gadelha governava a terra de Bento Freire.

Salomão disputou sua última eleição em 2010 como candidato e deputado estadual. Fez uma campanha tão desastrosa quanto divertida. Sem apoio da família, que já havia fechado com o primo André, e abandonado pelos ex-auxiliares da prefeitura, ficou sem palanque e apelou, como sempre, para a criatividade – e inventou o comício do tamborete. Espalhava o popular objeto em determinado bairro e recorria a uma dupla de excelentes oradores para atrair a multidão – ele mesmo e a filha Maria Alice. Os eventos, sucesso de público, contrastaram com o péssimo resultado das urnas.

Derrotado, era natural que Salomão ficasse chateado com a cidade que governara por seis anos e que lhe dera uma votação pífia. Que nada. O prefeito que desafiou a Cagepa, criando a empresa municipal de água e esgoto, e recorreu à energia solar para expulsar da cidade a também impopular Energisa, deixou de lado a tristeza eleitoral e envergou sem trégua alguma outra bandeira, a do petróleo. Foi animado por esse novo objetivo que Salomão tomou o caminho de Sousa para fermentar o debate sobre uma alternativa de riqueza para a região. Não deu tempo. Antes de Sousa, havia uma pedra no meio do caminho, Pombal. Foi ali que Salomão interrompeu seus incontáveis sonhos e, como disse Getúlio Vargas, saiu da vida para entrar na história.






quarta-feira, 9 de março de 2011

Seus óculos


Eu achei seus óculos hoje, esquecidos no porta luvas do meu carro, assim, descuidadamente esquecidos. Mas estavam lá, para que você deles fizesse uso, rapidamente, como de costume, a fim de ler pequenas anotações antes de uma audiência, de uma palestra, de um discurso. Já que você não volta, já não entrará no meu carro. Tirei-os de lá e coloquei sobre a minha cabeceira e agora os encaro estática.

Tentei ver por trás deles, como se procurasse arfante ver através dos seus olhos, e ser você um pouco. E sendo você, abrandar a minha saudade. Óbvio que minha visão ficou apenas embaçada, e nenhuma licença poética respeitou meu imenso e verdadeiro sofrimento. Quisera eu fosse apenas poesia, a perda. Como em tantas e tantas músicas de amores perdidos, quisera eu, fosse apenas poesia. Eu tiraria seus óculos, sem rosto úmido, os devolveria para você como numa brincadeira, como nos meus teatros, lembra? E você bateria palmas.

Não é tão simples assim. Claro que não. Esse cenário de dor vibrante repleto de objetos que mais parecem personagens. Amantes tristes e voluntariosos. Utópicos. Não é um cenário de teatro, as cortinas não fecham e nós voltamos para a coxia sorridentes, sem ansiedade e nem tormento. Ah, não. Ainda que eu deseje enormemente um faz de contas – e às vezes eu até ensaio, sabe? – na coxia a agonia é ainda maior.

Foi com seus óculos que fiz esse faz de conta hoje. Coloquei na face, e ri despretensiosa, querendo tão somente uma nostalgia tranqüila, daquela forma que acontece quando as lembranças boas são reconfortantes, e não destruidoras do cotidiano. Porque é mais fácil se ferir do que fazer cócegas em si mesmo. Esse tempo do faz de contas, do teatro, vai demorar a chegar. E, quando chegar, bem, não será mais teatro. Não vou precisar encenar nada para lograr meu desespero.

Hoje não vou tomar minhas pílulas de dormir. Meu psiquiatra não me poupa de ansiolíticos e hipnóticos. É um homem muito bom. Poupa-me do sofrimento. Assim, eu não preciso enfrentar noites turbulentas, virando de um lado para outro na cama, sem conseguir me concentrar em nenhuma leitura até que o sono chegue naturalmente. Em contrapartida, pouco me recordo dos meus sonhos.

Acontece que, você bem sabe, nos dias de hoje, embora a vida tenha ficado mais longa – perdoe-me esse clichê que também não me apraz – a pressa é cada vez maior. Então não há espaço para noites insones, não há espaço para sofrer. E, ainda que tivéssemos, não creio que em momento nenhum, nos mais imemoriais dos tempos, tenha existido espaço no espírito humano para tamanho pesar. Por isso seu avô morreu de banzo, você dizia, não havia benzodiazepínicos! Por isso Van Gogh cortou a orelha. Por isso eu não vou morrer de banzo, nem amputar algum membro exterior como uma espécie de somatização voluntária que mostre o quanto amputada de alma estou. Ainda tenho a sertralina e minhas miúdas encenações. Além do mais, acessos de surto não é um luxo ao qual pode se dar a classe média.

No espetáculo de hoje, deixei seus óculos sobre a minha cabeceira. Infelizmente, minha miopia só me permite vê-los através dos meus próprios óculos. Devo interpretar a mim mesma. Interpreto uma amante serena, que observa os pertences do amado com aparente lucidez, como quem precisa apenas de uma lembrança por perto. Mas, claro, é mera interpretação. Na coxia, revelo-me doente e alucinada. Acalmo-me com divinos fármacos. Ainda assim, dentro do alívio efêmero da droga, murmuro para mim mesma que deixo seus óculos na cabeceira, porque espero confiante você voltar. 

M. 

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Sobre os meus pais


Seis meses depois que mamãe morreu, fui à Casa Grande, como chamamos a casa de nossa família em Sousa, na ocasião do aniversário de Lafa, e encontrei apenas uma tal “Casa dos Espíritos”, um lugar abandonado onde eu cri que jamais poderia achar qualquer sinal de aconchego. A mansão era apenas um mar de lembranças, material vivo para a crônica. Todavia, de um súbito, percebi que o silêncio monástico era disfarce, visto que havia e há memória falante em cada tijolo, móvel, azulejo, espelho, nas escadas e nos mais recônditos aposentos (apesar de ser mesmo isto a idéia de uma casa dos espíritos). Não ouvia a música sacra da Igreja em frente, tampouco a voz estridente de Padre Dagmar, que havia nos deixado também há pouco. Eu sabia que isto se dava apenas ao fato de não ser domingo. No entanto, mais esta ausência causava a impressão devastadora de que todo o Universo que eu conhecera e nele vivera um dia havia de repente desaparecido.


Mas agora, mais uma vez, quero afastar essa imagem desoladora. Passado um tempo, papai tornou à cidade e, novamente, encontrei família, quartos cheios , multidão, geladeira cheia de comida comprada somente para mim e meus irmãos, lençol com cheiro de amaciante, bolo em cima da mesa, novas roupas, escova de dente, toalha e sabonete em cima da cama, enfim, tudo em festa. Entendi que é uma casa que está sempre à espera, com os seus espíritos, a fazer folia com a aproximação de seus donos. Para a casa, entre nós e a leve brisa que vem do Aracati e enche aquele vale de maresia e desejos de Iemanjá, não há qualquer diferença: são presenças certas, muito embora o vento do Aracati, por ser dos fluxos divinos, é de comparecimento infalível.


Compreendi, então, que meu juízo era falso, que sempre fui por demais cética e pessimista, nunca uma entusiasta da força e da obstinação, como é a Casa Grande. Compreendi ao ver meu pai deitado na cama, conversando no celular e transbordando, senão felicidade, uma estranha alegria. Um assombro, para mim, que surgia nostálgica e ungida de melancolia. A TV ligada e as várias xícaras de café em cima da mesa de apoio deram-me a sublime sensação de que alguém ainda vivia ali, ou pelo menos resistia de forma fiel.


Eu sinto falta deles.


Não tinha a menor idéia do que nos esperava naquele dia 7 de um dezembro que seguia tão feliz, quando mamãe morreu. Agora, já conheço bem o angustiante desejo de tocar, ter, interagir, ouvir a voz de alguém que simplesmente não existe mais. Embora já aceite com serenidade e como companheiras a dor e a saudade, mais uma vez não tenho a menor idéia do que nos espera, depois deste último dia 25 de um novembro que seguia faceiro e jovial. Mas a vida nos é sempre lançada à queima roupa, por vezes, com uma violência sem igual e, para evitar o sofrimento, resta a opção de lamuriar-se e viver dentro de si uma vida paralela, onde tudo funcionaria tal como quiséssemos, ou apenas sofrer e, em sofrendo, fortalecer o coração.


Certa vez, viajando para Sousa, a medida em que entrávamos nas áridas terras sertanejas, mais meu pensamento caminhava sorrateiro para o terreno vasto e duro do passado. Sei que, embora doloroso, é também precioso fazê-lo sempre, a fim de que não se dispersem nossas recordações e fujam para inalcançáveis confins do espírito. Que recordar é viver, ah, isto é precioso.
Passado e presente são indissolúveis, estão para sempre unidos, passo a passo, um se transformando no outro, trocando as máscaras, construindo sentidos, produzindo o dinamismo da vida. A vitalidade do passado depende do nosso potencial de mergulharmos dentro de nossa própria alma.  Quanto maior essa capacidade, mais fácil torna-se esquecer do que sentimos agora, no momento imediato: o tato, o cheiro, o paladar, a visão e a audição do presente. Assim, facilmente nos transportamos para o que cremos ser um longínquo pretérito. E é aí que comprovamos Bach: longe é um lugar que não existe. Os momentos vividos são acessíveis, andam conosco em nossos corações e, sendo assim, também as pessoas.


Se assim dou vida à minha memória, nunca negligenciando o presente (pois este também será memória um dia), estou junto dos que deixei e dos que me deixaram, ainda que com dor e pesar.
Eu percebo que estas feridas são como as dos diabéticos: não cicatrizam o suficiente e, vez ou outra, acabarão abrindo e sangrando. Só sabem aqueles que perderam criaturas muito especiais e queridas. As pessoas dizem que o tempo cura tudo, mas não isso. É preciso ter paciência e não se desesperar quando a ferida abre, por alguns dias, meses, talvez. Paciência, serenidade e aquele velho bordão: aproveitar as pequenas felicidades enquanto a grande não chega. Há sempre uma tarde bonita, uma lua cheia (veremos, aproximadamente, 936 luas cheias ao longo de nossas vidas, e eu acho bem pouco), um livro que toca sua alma tão profundamente que você gostaria de tê-lo escrito ou vivido naquele lugar, com aquelas pessoas, naquele tempo, sendo uma pessoa diferente. Há sempre uma idéia nova, algo para produzir, um bolo de chocolate pra comer e, sobretudo, há sempre alguém precisando de ajuda, e a vida perde todo o sentido se nossa capacidade de servir não é utilizada.

Servir. Isso foi tudo o que os meus pais sempre fizeram. E tal mister nos foi ensinado (porque servir, verdadeiramente, é um ofício e um sacerdócio), pelas grandes obras pelos dois erguidas na nossa querida pátria chamada Sousa, onde, como em todas as grandes civilizações, cruzam dois rios intermitentes, que às vezes enchem tanto que alagam a cidade, destroem casas, tiram as crianças da escola, e que, outras vezes, matam gente e plantação de sede, na ordem que se prefira. Os rios são o Rio do Peixe e o Piranhas. Como se sabe, os seres humanos agrupam-se ao redor de rios. Foi assim com o Nilo, com o Tigre e o Eufrates, com o Huang Ho, o Ganges, o Sena, o Peixes e o Piranhas.


A Sousa, primeiramente, do labore invictum, seu lema oficial, que casa perfeitamente com a Sousa de Aline e Salomão Gadelha, qual seja, a Sousa da água de graça, do DAESA, a Sousa da Saúde Pública modelo para todo o Brasil, com perfeita estrutura de Saúde Mental (CAPS, inclusive infantil e álcool e drogas – um dos primeiros da Paraíba – e as residências terapêuticas), a Sousa que recebeu, através dos meus pais, a primeira unidade do SAMU do interior do Nordeste, a Sousa da Otoclínica, da Policlínica, de 100 por cento de PSF, das Farmácias Básica e Popular, a Sousa, única cidade da Paraíba na qual seus gestores tomaram a iniciativa de pagar dois salários mínimos para os Agentes Comunitários de Saúde; a Sousa do Centro Cultural Banco do Nordeste, da varredura do preconceito, com a construção do Centro Calon de Tradições Ciganas e o emprego de ciganos nas mais diversas funções públicas; a Sousa do Credendo Vides; do fortalecimento da agricultura familiar através do programa Compra Direta e do Projeto Mandala; a Sousa de mais de 300.000 mil metros quadrados de pavimentação,  de mais de 300 moradias, da construção e reforma de praças; a Sousa da educação, com a instalação do primeiro Telecentro da Paraíba, da abolição do transporte escolar em carros de pau-de-arara, da informatização de todas as escolas municipais, da construção da Indústria do Conhecimento; a Sousa do Turismo, com o Festival do Coco, evento conhecido em todo o Nordeste, do Carnaval Molhado, do Festival dos Dinossauros, do Reveillon em São Gonçalo.


Foi, efetivamente, um governo realizado a quatro mãos, no qual as pessoas sabiam diferenciar os méritos de cada um. Por vezes, escutamos dizerem – isto foi obra de Aline; isto foi obra de Salomão. Mas o conjunto restou harmônico e especial, como era a maneira que os dois se relacionavam. 

A Sousa do Petróleo.

 

O engajamento do meu pai na luta pelo petróleo, foi uma missão que contemplou não apenas a municipalidade pela qual era responsável, mas toda a Bacia do Rio do Peixe. E, provando que não somente os detentores de cargos eletivos têm o encargo de lutar pelo desenvolvimento de nossa região, foi até o fim acreditando no alargamento das possibilidades da terra, pois como ele costumava dizer, o Nordeste ainda está todo por fazer. Há imensos descampados entre uma cidade e outra passando pela BR-230. Meu pai sonhava com a ocupação industrial e comercial de tais espaços, sendo o ser humano contemplado com as benesses deste progresso.

 

A Sousa do Petróleo, cuja luta ele iniciou e a ela dedicou-se como um verdadeiro sacerdote, participando de todas as sessões da nona rodada de licitação de áreas para exploração de Petróleo e Gás natural promovida pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), onde conseguiu que 12 blocos da bacia do Rio do Peixe fossem arrematados por 4 empresas. Participou de várias reuniões com representantes de empresas, como a Shell, e de entidades representativas do setor, como o IBP. 

 

É a Nova Sousa. A Sousa do Ouro Negro. Lembro agora as palavras do diretor da UBX - empresa que possui o controle da Tarmar, compradora de um dos blocos da bacia do Rio do Peixe -, Caio Ferreira Marques, que elogiou a dedicação do meu pai na negociação. "Pela primeira vez eu vi um prefeito buscar investimentos desta forma".

 

Afastando o amor e a admiração de filha e falando como crítica política e mera espectadora de todo esse processo, afirmo, com solidez e com o amparo das opiniões de diversos outros, que Salomão Gadelha foi o protagonista da conquista do petróleo na Paraíba. Obviamente, não agiu só, valeu-lhe a crença de seus familiares e amigos mais próximos, que lhe davam a confiança para seguir em frente – não que ele precisasse, dada sua notória obstinação – pois a grande maioria julgava tais ações fruto de mais uma de suas tão conhecidas polêmicas, filhas de mais uma loucura.

 

Mas a loucura é a característica mais forte dos visionários e revolucionários. Lembrem daqueles que um dia foram considerados anarquistas, arruaceiros, foras-da-lei, encrenqueiros perigosos, loucos, por fim.  Não foram estes que derramaram chá na Baía de Boston? Não foram estes que derrubaram a Bastilha? Não foi aquele que construiu Brasília? Não foi aquele Howard Hughes que quebrou o recorde mundial de velocidade de um avião no ar e construiu um Hércules, gigantesco hidroavião, com a maior envergadura na História, batendo mais um recorde? Não foram aqueles jovens guerrilheiros do Araguaia e em tantos outros lugares do país, lutando contra os grilhões generalescos? Não foi um louco aquele que disse que a terra girava em torno do sol? Mas levaram a cabo suas idéias. Lutero afirmou, por todos eles, em um dado momento da história, afirmou pelos loucos de antes e pelos que viriam: “Aqui estou e aqui ficarei, porque sou incapaz de agir de outra maneira”.

 

Talvez muitos ainda não compreendam a magnitude da ação de Salomão Gadelha em prol do petróleo. O julgamento daquilo que é uma grande realização e uma grande iniciativa é difícil de ser inteiramente percebido e concebido como grande em seu tempo. Suetônio foi considerado um historiador medíocre, porque não viu tudo. Nos dizeres de Carlos Heitor Cony: “Ainda aqui, Suetônio não viu tudo. Impressionou-se com a grandeza dos Césares, da Roma Imperial, e não teve o pressentimento que, em seu tempo, em sua própria cidade, o mundo começava a mudar. Erro que, de resto, não foi só seu. Até hoje muitos homens não compreendem que o mundo mudou”.

 

Afirmo que há muitos homens na Paraíba dispostos a continuar nesta peleja, sejam agentes políticos, ou não. Eu mesma, e meu irmão, Lafayette, continuamos engajados, como cidadãos, por ora, como povo - a força mais viva e mais poderosa que há em nosso País, mas não é assim reconhecida. 

Agora que as obras já estão iniciadas, a função primordial dos que vestirem a farda de combatentes é garantir o petróleo permanente, na visão acertada de Cristovam Buarque: “Mais ou menos quando o ITA e o CTA começavam, o Brasil estava na campanha “O Petróleo é Nosso”. De lá para cá, queimamos bilhões de barris que nunca voltarão, que roubamos das gerações futuras. Hoje deveríamos dizer “o Petróleo é das Crianças”, porque ele deveria ser usado para construir o Brasil do futuro, evitando a conhecida maldição que o petróleo tem trazido a tantos países, que consomem suas reservas e gastam seus recursos financiando despesas correntes voltadas para o presente.”

Peço, encarecidamente, que despertem o interesse para este tema, que briguem por ele e que dele façam melhor uso possível. Peço desta forma pela pessoa que não está mais aqui para fazê-lo. Que não pediria por ele, porque não guerreou por ele, mas por todos os paraibanos. Que unam forças, e estudem, e desenvolvam projetos. Que isto esteja acima do interesse pessoal de cada um, porque no Festival do Petróleo, evento por meu pai criado e que deveria estar sendo realizado agora, não fosse a tragédia que agora me desola, foram convidados situação e oposição. Para debater, discutir, honrando, assim, o mandato que lhes foi concedido, a imponência da democracia e o respeito para com o seu povo.

 

A batalha não pertence somente aos mais fortes, mas sim aos vigilantes, aos ativos, aos corajosos. Não temos escolha: se formos tão baixos para querer nos retirar agora, já será tarde demais.

 

A Paraíba está mudando. O Brasil está mudando. Vejamos que o nosso presidente saiu de classe baixa e, para não me estender na notória revolução social que foi o seu governo, gerando, sobretudo, mobilidade social e minoração da pobreza, falo que a maior revolução instaurada foi primordialmente sua ascensão ao poder, alargando os sonhos dos brasileiros. Da forma mais simples, digo: cada um de nós é dono do próprio destino e pode alavancar-se para os pontos mais altos. Nosso Governador eleito foi também sindicalista e é filho de pequeno agricultor. É a conferência mais alta que se pode dedicar à auto-estima de um povo. É o fim do conformismo. Da concepção errônea e incutida no imaginário popular por tantos anos de que Deus quer assim. Ou como melhor explicou Ortega y Gasset: “Um povo renasce por si mesmo quando se sente com uma nova vida, digna e alegre, onde todos têm sua missão”.

 

A última campanha de meu pai foi escassa de recursos. Em cima de um tamborete, provocou justamente a reflexão de que não precisa ser assim. De que o povo não é boiada, de que o voto é livre e  é a arma mais forte que cada um possui enquanto indivíduo político. Cantou Zé Ramalho: Porque gado, a gente marca, tange, ferra, engorda e mata. Mas com gente é diferente. Exultou a verdadeira cidadania e o fim do neocoronelismo.

 

Nasci em uma família de tradição política, mas isso não informa necessariamente uma oligarquia, como certificam os críticos. Há famílias repletas de médicos, mecânicos, advogados, artesãos, costureiros, engenheiros. Isto não representa uma casta, mas antes o amor pelo ofício que se escolhe, transmitido aos seus descendentes. Amo meu ofício, e não quero que ele morra em mim – é apenas isso.

 

Em outra vertente, há políticos cujas famílias nada têm a ver com tal emprego, mas, todavia, são muito mais adeptos de práticas coronelistas e, assim, preocupados com seus próprios interesses do que com as necessidades do povo. Fazem da política um balcão de negócios. Mas isto está mudando. Encarecidamente, faço outro pedido: os que já têm espírito público, mantenham-no, sejam firmes, ainda que vivendo entre feras, afastem de si o desejo de também ser fera; os que não o tem, e por uma circunstancialidade estão exercendo a representatividade, valorizem-na. Por ora, talvez o sistema de compra de votos continue. Mas, com o tempo, vocês, que, tal qual disse Belchior, amam o passado e não vêem que o novo sempre vem, compreenderão que se não desenvolverem dentro de si a sensibilidade de olhar para o povo, não do alto de um palanque ou do conforto de seus gabinetes, mas de perto, olho no olho, com a justa sensibilidade, serão brevemente enxotados de onde nunca deveriam ter chegado.

 

Estejam certos de que sim, tudo muda, e com toda razão.

A filosofia do servilismo não nos foi, a nós, filhos, lecionada apenas através das grandes obras erguidas, dos serviços prestados e das lutas travadas – não que isso não fosse o bastante, já seria – mas também através de pequenas lições diárias, como o ato de dar esmolas, oferecer um prato de comida, abrigo para uma noite, aula antes das refeições, porque nesse momento diziam: saibam, meus filhos, do privilégio da comida, do pão de cada dia. Mas de nada resolveria ter dito, de nada adiantaria o pequeno assistencialismo e a leveza das palavras, se não houvéssemos presenciado o combate diuturno dos dois justamente por isso, pelo privilégio da comida. Porque a fome é má companheira – diziam – assim, como podemos acusar de bandidos e marginais os que furtam para comer? Não são bandidos e marginais os que se omitem, os que vivem apenas para si, sobretudo aqueles que têm em mãos a função precípua de agir? Os que não se doam? Porque, no Brasil, onde há riquezas de recursos, fome, é genocídio, e não fatalidade da natureza.

 

Agora, sinto muita saudade. Saudade dos 21 anos que pude compartilhar ao lado do meu pai e dos 17 ao lado da minha mãe. Mas sei que a vida, ainda que curta, é tão cheia de acontecimentos e sentimentos que vão e vêm, que nós perdemos a noção do tempo e às vezes achamos que certas coisas duraram uma eternidade e que ainda não estão de fato terminadas.  E não estão. Como as lutas que aqui expus, e que pertencem a todos nós.

Mas mais que tudo, sinto saudade de dias mais criativos e alegres – porque, para ele, todo dia era de fato uma grande novidade, uma recriação do mundo; saudade do espírito audacioso e corajoso que não enxergo em mais ninguém; do meu grande artista do impossível; saudade dos relatos tão bem contados, sobre os mais diversos temas – revolução de 64 e sua participação na luta estudantil, Sousa na década de 30 e nós dois criando bucólicas imagens de tempos que não vivemos, divagações do tipo “Harry Potter, vilão ou herói?” Porque ele viu comigo todos os filmes da série; saudade de procurar ansiosamente a aparição sutil de Hitchcock nos filmes; saudade da proteção, do afago, das noites em que tive febre e insônia e alguém que mais do que ninguém tinha muito de médico e louco vinha me medicar; saudade do otimismo, da confiança, da generosidade; saudade até mesmo do Twitter e do Facebook, onde eu reclamava que ele perdia muito tempo; saudade de ouvir Sertaneja antes de dormir; saudade do “Eu te amo, Infinito e Universo”, porque quem me dirá isso novamente, com a mais absoluta sinceridade?

Como bem disse minha irmã Mirella a um desaforado jornalista, não acho que os mortos têm foro privilegiado e viram santos. Meu pai tinha inúmeros defeitos, como qualquer ser humano. Mas muitos de seus maiores defeitos vinham a ser grandes qualidades, a partir de um determinado ponto de vista. Assim segue ela: “Perdulário? Sim, sim. Seria capaz de tirar a roupa do corpo para dar a alguém que pedisse. Não suportava ver o sofrimento de ninguém. Tão bom, mas tão bom, que seria capaz de virar seu amigo mesmo depois de tudo que foi dito. Um homem doce, meigo, amável, incapaz de perseguir alguém. Um homem que me ensinou que devemos perdoar as pessoas que falam mal da gente.” De fato, ele passava por um momento de grande sofrimento, depois da morte da minha mãe e de diversas atribulações no âmbito político, mas tenho certeza de que ninguém jamais falará dele como um homem triste e sofrido. Este não era o meu pai, diz Mirella, ele era um guerreiro.  E, se é possível fazer um balanço da vida, digo que ele foi extremamente feliz. Falaremos dele como alguém alegre, divertido, envolvente, um amante e entusiasta da vida, no uso mais efetivo que pode ser dado à expressão.

Parece que agora eu mesma terei que saber que devo voltar cedo para casa e a quantidade certa de doses de uísque. Devo ter cuidado para não adormecer com os óculos no rosto, porque ninguém aparecerá de madrugada para retirá-los, com delicadeza, desligar o abajur e guardar o livro, deixando-o devidamente marcado na página que me fez dormir. Preciso aprender a julgar as pessoas sozinha, nunca esquecendo a lição, diversas vezes repetidas, de que há luz e trevas em todos os seres humanos. E também a escolher minhas roupas e perguntar se estou adequadamente vestida para ir para este ou aquele lugar, e se estou bonita. Talvez eu necessite, vez por outra, cantarolar para mim mesma os versos de Carinhoso e, assim, sentir-me um tanto menos só.  

Sou adepta do aleatório, mas até os céticos, em momentos de desespero, tem seus arroubos de fé. Muitas vezes pensei se não há um propósito na morte do meu pai. E pensei num muito simples: ele simplesmente não conseguia viver sem ela. Sem Aline. E, como acontece sempre que o futuro nos parece incerto e nos amedronta, buscamos tudo que há de passado. Vasculhei caixas de fotos, anotações, agendas. São pequenos confortos. Reminiscências das nossas vidas, às vezes parecendo tão desimportantes, mas preciosidades, nestes momentos. Recebi um sopro de vida ao achar, em um computador antigo, uma carta de amor de título “Uma noite sem você”, de Salomão para Aline, quando os dois ainda estavam entre nós. O pequeno trecho a seguir, talvez justifique um pouco meu momento de crença, de que um sem o outro não poderia existir:

Uma noite sem você parece durar a eternidade. Porque as lembranças são incontáveis, uma atrás da outra, numa contabilidade tão interminável quanto surpreendente. A diversidade de fatos é tão grande que chega a assustar, mesmo a quem está se habituando a viver sem medo. (...) Uma noite sem você parece durar a eternidade. Quero tirar a noite de uma “tapa só”, pra não acordar no meio dela e ver que estou só. E quando isso acontece, as lembranças se multiplicam. E aí, definitivamente, não encontro mais o sono. As recordações, que em nada combinam com um “sono reparador”, vêm aos borbotões, assaltando a tranqüilidade de quem precisa acordar cedo – porque tem “um leão pra engolir” todos os dias. (...)E fomos tocando a vida, até que a vida mostrou que ela é que tocava nosso destino, levando-nos para o lado que DEUS nos reservou. Estamos felizes? EU ESTOU... COMO NUNCA!!! Porque amo e sei que sou amado, por alguém muito especial. É difícil saber qual sensação é melhor: a de amar ou de ser amado. Óbvio que a ausência de uma mata a outra. Mas, em amando e sendo amado, é difícil distinguir o que é mais agradável. Uma noite sem você... vou enfrentar mais outra, hoje, agora, com a saudade de quem ama com a impulsividade da paixão, e de quem é apaixonado com a força do amor.
Uma noite sem eles parece durar uma eternidade. E, a verdade, é que, muitas vezes, a vontade maior é  de tirar a vida de “um tapa só”, para não ser tomado de assalto no meio de um cotidiano conturbado e vermos, nós quatro, eu, Lella, Lafa e Lilice, que estamos sós. Mas parece que é a vida que toca o nosso destino e nos leva para o lado que Deus, ou o aleatório, nos reserva. Uma noite sem eles. Um dia sem eles. Uma vida sem eles. E vamos enfrentar uma inteira, hoje, agora, com toda a saudade sem fim de quem ama, e de quem ainda se sente amado.  

Aos meus pais, não encontrei nada mais preciso para dizer neste momento senão a dedicatória de Carl Sagan, em um de seus livros, a sua esposa Annie: Diante da vastidão do universo e da imensidão do tempo, foi uma alegria para nós poder partilhar um planeta e uma época com vocês.

À Sousa, reiteramos: não somos órfãos, a cidade nos acolheu como família, da mesma maneira como, um dia, foi acolhida pelos nossos pais.  À Sousa, reiteramos: é o lugar para o qual vivemos, são as nossas raízes, e quem não tem raízes, o vento leva. À Sousa, a certeza e a garantia de que haverá sempre um tamborete à sua espera, a levantar qualquer um que deseje firmar-se contra aqueles que querem o poder apenas pelo poder, com amor e coragem, sem ódio e sem medo. À Sousa, a nossa eterna gratidão.

M. 

domingo, 2 de janeiro de 2011

Para Marília


Perto do Natal e eu estranhei minha tristeza. Natal é sempre pra ficar feliz. Lembro-me bem, há uns quatro anos atrás, mamãe vivia me dizendo: “Myriam, você precisa ser mais séria.” Aliás, todos viviam me dizendo. Eu era dona de uma leveza incontestável, que parecia incurável. Uma fogueira da infância, nunca terminava. Hoje, entre as mais diversas recomendações, eu escuto da minha irmã mais velha: “Minha flor, amoleça seu coração. Tire esse peso de você” . 

A realidade é que sim, eu ando pesada, nas mais diversas acepções da palavra. Lembrei do Natal de 3 anos atrás, eu e mamãe indo comprar presentes para todo mundo, Camboinha fervilhando de gente, uma brisa com cheiro de maresia era suficiente pra me deixar contente por toda a tarde.
Mas um pré-requisito da leveza é que a gente não deve viver de passado. Que devemos aprender a gostar do presente, ainda que o passado nos pareça melhor. Venho tentando esquecer, não olhar as fotos, não remexer os papéis, ler cartas antigas, mas a minha atração pelo que é velho é inata. A história é fundamental na minha vida. A minha, a dos grandes heróis e a dos que não deixaram nada para os livros que não uma parte mínima do movimento da massa, do curso de todos, da idéia geral de uma época, da moda. Aqueles que me dão arrepio quando lembro: os anônimos, os que restringiram sua imortalidade aos seus filhos. Não que isso me pareça medíocre, infeliz, sem graça. Muitas vidas felizes podem ter sido vividas dessa maneira. Longe dos holofotes, mas no âmago de um lar aconchegante e de um cotidiano tranqüilo, ou mesmo num grande tumulto, num duelo constante com a vida diária, consigo próprio, com seu universo particular, mas no fim de tudo, uma vida feliz.

Marília, comecei a escrever-te antes do Natal. Hoje já é dia dois de janeiro e só agora recomeço. Até minhas cartas ficam facilmente incompletas. Qualquer estalo de melancolia ou alegria mais efusivo do que o habitual me tiram do foco, do que realmente queria contar. Por um milagre, hoje estava me sentindo tal como no dia em que comecei a escrever esta carta. Milagre, sim, pois, para mim, é muito rara a repetição contínua de sentimentos, de pensamentos, de idéias. Minha filosofia toda muda velozmente da noite para o dia, da água para o vinho. Vivo entre uma crise existencial dos diabos unida à hipocondria desestabilizadora e um estado de alegria efusiva, de amor incondicional, amplo, infinito, pela vida e por toda a humanidade. Após esses momentos otimistas de contentamento e compaixão, de exaltação da contemplação da natureza, do bom e do belo e, obviamente, do cumprimento desses ideais, segue-se uma tristeza profunda, um vício melancólico, que é quando eu assumo a postura mais ranzinza e cética possível.

Tenho uma necessidade de ser justa, gentil e amável com todos os seres vivos. Essa idéia dos seres vivos me surgiu recentemente, Deus foi embora de minha vida, uma perda terrível, se você quer saber. Não posso afirmar ainda com certeza se Ele partiu de vez, pois já falei de minha natureza volúvel, do meu pensamento exageradamente fluido. Eu careço de pragmatismo. Prescindo de sentimentalismo e de abstração. Meu Deus era barbudo, sim, velhinho. Não posso dizer verdadeiramente que O amava, mesmo quando cria piamente em sua existência. Mas tinha medo e ainda tenho. Deixei o colégio de freiras, as irmãs e seu medievalismo, mas eles nunca me deixaram. Os conceitos rígidos de temor ao Senhor, da certeza do seu castigo quando Ele dizia ser preciso ainda estão no meu coração tanto quanto o temor da morte, do nada que talvez exista.

Marília, acho que a vida após a morte, da forma que nos contaram, não existe. Mas talvez, daqui a muitos e muitos anos, eu poderei ser uma flor, um passarinho, uma criatura totalmente nova que venha a surgir na face da terra. Perguntarei a algum biólogo quais as chances do pó do meu corpo poder dar origem à outra vida, a pelo menos um simples organismo unicelular, mas que pulsa no emaranhado lindo, brilhante, vivo deste mundo. O mundo é, sobretudo, vivo. Através de todos os seres, de todo o movimento, de toda a luz. Isso é Deus para mim neste momento. E sinto um medo tremendo de ser castigada por duvidar de sua existência, como dizia irmã Paula, que Deus nos fez à sua imagem e semelhança, que Deus é um ser que tem algo de humano. Que nós temos algo, muito, na realidade, de Deus em nós, sem dúvida. Mas por que Deus, em alguns trechos da bíblia, tem um caráter tão humano? Por que Deus me faz ter vontade de apagar tudo que escrevi por temer o seu castigo, por que Deus não abre espaço para a dúvida?

Sei que a religião é de fundamental importância para muita gente e que há o argumento de que o ateísmo não serve para nada, que ele nada constrói, nos deixa a mercê do vazio, do nada. Mas também a religião muitas vezes não já infligiu à humanidade tanta dor, física e psicológica, não já submeteu tantos espíritos à perturbação? Agora mesmo, a religião sob cuja égide tenho vivido, não torna minha alma vacilante? Talvez o ateísmo não nos leve à paz, mas tampouco a religião nos dá segurança de que podemos alcançar a plenitude. E não é isso que, afinal, procuram todos os seres? Mais uma vez quero apagar o que escrevi, pois o Deus onipresente, onisciente já sabe que duvido dele, me castigará? Não, não duvido desse Deus, pois, sendo a vida tão cheia de desencontros e dissabores, qualquer coisa poderia eu apontar como o castigo pela minha dúvida. E ainda os que seguem com fé também passarão por momentos amargos. Qual será a diferença? O Senhor estará com eles.

Digo-te, Marília: detesto a descortesia, a indiferença, a falta de amor, o apego, a falta de calor, de cordialidade, a maldade propriamente dita, a covardia, também, pois li, recentemente, que a bondade não deve ser uma virtude passiva, que não faz o mal somente. A bondade é ativa, é corajosa. Será a covardia uma maneira alternativa de ser mau? Creio que sim. Bem como a indiferença. Não tenho sido das mais corajosas, muito menos das mais ativistas que lutam pela bondade e igualdade. Estou distante do que considero justo em função das duas mãos que me foram concedidas para trabalhar na obra de Deus. O Deus no qual creio é um amor mútuo entre os homens. Será o bastante, Marília, ou preciso ter uma fé inabalável no Senhor velhinho, de barba, com Jesus ao seu lado, que separa estritamente o bom do mau, que condena os infiéis à eternidade do inferno? Será que não é suficiente alimentar a minha fé inabalável no amor, na compaixão, num sentimento profundo de compreensão dos seres humanos, de todos os seres, compaixão e compreensão pela natureza, pelo ritmo da vida, compaixão em relação ao sofrimento e ao êxito do outro, pois já disse Oscar Wilde que a forma mais pura de solidariedade é no momento da vitória. É quando alegramo-nos verdadeiramente com o sucesso do próximo, e não somente quando nos prestamos a estar com eles nos momentos de fracasso e dor. Pois muitas vezes (se achar esse pensamento por demais egoísta e feio, perdoa-me e corrige-me) assistir à dor do outro é contemplar nossa própria felicidade, nos regozijarmos com nosso contentamento através de uma sórdida e cruel comparação, sentir gratidão por não estarmos ali, na pele do que agoniza.

Será que Deus me punirá por não ter conseguido enxergar nitidamente Sua onipresença, Seus sinais, sua bondade explícita? Vejo pequenas coisas, sinais, nada comprovado, nada ‘cientifico’. Talvez eu procure em vão. Talvez Deus seja mesmo mágico, invisível, as vezes isso me parece absurdo, ainda que lindo, uma idéia sublime, mas absurda diante das injustiças do mundo. Belo demais que haja uma outra vida perfeita, cheia de luz. Não estou certa, Marília, meu espírito vê embaçado.

Vou rezar agora à noite, sabe. Meditar, o que seja. Tentar entrar em contato com algo que não seja apenas meu corpo. Eu era tão certa da existência do espírito não material. Mas agora entendo que sou toda corporal, sou toda em cada ínfimo átomo meu, sou toda nas minhas coxas, no meu colo, no meu suor, no meu temor, na minha sinusite. E essa engrenagem corporal, essa certeza de que todas as potências estão tão somente nessa minha carne impedem-me de conectar-me com qualquer Supremo, qualquer energia, qualquer natureza. Sinto-me incapaz, quando penso que meu desejo de espiritualidade não vai muito além das minhas sinapses. 

Não estou com aquela vontade louca de escrever, apesar de ter passado o dia lendo Clarice Lispector. Achei uma pergunta bonita nela: ``Como será a primeira primavera depois que eu morrer?``. Mas esta tarde tive um certo enjôo dela nesse livro , Um sopro de vida. Porque ela fala dela o tempo inteiro, de um jeito lindo, claro. Mas eu gosto mais quando o escritor se mete no sentimento e na vida dos outros, explorando suas dores e alegrias, explicando-as, detalhando-as , fazendo o leitor sentir-se o personagem. O romance e a leitura devem servir como uma forma de compreensão do outro, de descrição das outras vidas. Colocar-se no lugar do outro e ainda por cima descrever. Claro, é um  mérito enorme falar de si com destreza, de tal forma que o leitor sinta-se o autor e possa compreendê-lo. Mas ainda acho que o desenvolvimento de um ser diferente de si implica num esforço e numa sensibilidade muito maiores.

Por fim, quero dizer a você, Marilia, que eu vejo beleza sempre,em qualquer lugar mas que, para mim, o ano fica muito mais bonito a partir de setembro. E que agosto é mesmo o mês do desgosto até que se prove o contrário.

Espero que esta carta não esteja por demais tediosa. Você pode demorar pra ler o tanto que eu demorei pra escrever.

Quero que você me conte sobre o seu estágio, sua vida, amores, etc. Você fala muito pouco de você e eu sou uma espalhada nas cartas. É culpa minha, esse seu silêncio maior?

Imenso carinho,

M.