quarta-feira, 9 de março de 2011

Seus óculos


Eu achei seus óculos hoje, esquecidos no porta luvas do meu carro, assim, descuidadamente esquecidos. Mas estavam lá, para que você deles fizesse uso, rapidamente, como de costume, a fim de ler pequenas anotações antes de uma audiência, de uma palestra, de um discurso. Já que você não volta, já não entrará no meu carro. Tirei-os de lá e coloquei sobre a minha cabeceira e agora os encaro estática.

Tentei ver por trás deles, como se procurasse arfante ver através dos seus olhos, e ser você um pouco. E sendo você, abrandar a minha saudade. Óbvio que minha visão ficou apenas embaçada, e nenhuma licença poética respeitou meu imenso e verdadeiro sofrimento. Quisera eu fosse apenas poesia, a perda. Como em tantas e tantas músicas de amores perdidos, quisera eu, fosse apenas poesia. Eu tiraria seus óculos, sem rosto úmido, os devolveria para você como numa brincadeira, como nos meus teatros, lembra? E você bateria palmas.

Não é tão simples assim. Claro que não. Esse cenário de dor vibrante repleto de objetos que mais parecem personagens. Amantes tristes e voluntariosos. Utópicos. Não é um cenário de teatro, as cortinas não fecham e nós voltamos para a coxia sorridentes, sem ansiedade e nem tormento. Ah, não. Ainda que eu deseje enormemente um faz de contas – e às vezes eu até ensaio, sabe? – na coxia a agonia é ainda maior.

Foi com seus óculos que fiz esse faz de conta hoje. Coloquei na face, e ri despretensiosa, querendo tão somente uma nostalgia tranqüila, daquela forma que acontece quando as lembranças boas são reconfortantes, e não destruidoras do cotidiano. Porque é mais fácil se ferir do que fazer cócegas em si mesmo. Esse tempo do faz de contas, do teatro, vai demorar a chegar. E, quando chegar, bem, não será mais teatro. Não vou precisar encenar nada para lograr meu desespero.

Hoje não vou tomar minhas pílulas de dormir. Meu psiquiatra não me poupa de ansiolíticos e hipnóticos. É um homem muito bom. Poupa-me do sofrimento. Assim, eu não preciso enfrentar noites turbulentas, virando de um lado para outro na cama, sem conseguir me concentrar em nenhuma leitura até que o sono chegue naturalmente. Em contrapartida, pouco me recordo dos meus sonhos.

Acontece que, você bem sabe, nos dias de hoje, embora a vida tenha ficado mais longa – perdoe-me esse clichê que também não me apraz – a pressa é cada vez maior. Então não há espaço para noites insones, não há espaço para sofrer. E, ainda que tivéssemos, não creio que em momento nenhum, nos mais imemoriais dos tempos, tenha existido espaço no espírito humano para tamanho pesar. Por isso seu avô morreu de banzo, você dizia, não havia benzodiazepínicos! Por isso Van Gogh cortou a orelha. Por isso eu não vou morrer de banzo, nem amputar algum membro exterior como uma espécie de somatização voluntária que mostre o quanto amputada de alma estou. Ainda tenho a sertralina e minhas miúdas encenações. Além do mais, acessos de surto não é um luxo ao qual pode se dar a classe média.

No espetáculo de hoje, deixei seus óculos sobre a minha cabeceira. Infelizmente, minha miopia só me permite vê-los através dos meus próprios óculos. Devo interpretar a mim mesma. Interpreto uma amante serena, que observa os pertences do amado com aparente lucidez, como quem precisa apenas de uma lembrança por perto. Mas, claro, é mera interpretação. Na coxia, revelo-me doente e alucinada. Acalmo-me com divinos fármacos. Ainda assim, dentro do alívio efêmero da droga, murmuro para mim mesma que deixo seus óculos na cabeceira, porque espero confiante você voltar. 

M. 

9 comentários:

Anônimo disse...

Sensibilidade arrepiante. Saudades eternas. Minha solidariedade inifita e "universa". MMS

Anônimo disse...

Sensibilidade arrepiante. Saudades eterna. Minha solidariedade inifita e "universa". MMS

Max disse...

que coisa linda!!

Anastacio disse...

VC ESTA NO MEIO DE MILHÕES DE PESSOAS E SENTE A FALTA DE UMA SÓ OU TALVEZ DUAS.... MAS Ñ DEIXE QUE NOITES VIREM EM NOITES CLARAS, POIS VC DEVERÁ SIGUIR O SEU CAMINHO, UM CAMINHO A QUAL, ALGUEM NUNCA PODE TE CONDUZIR, OU ATÉ MSM TE DEIXOU NO MEIO DESTE CAMINHO. É MUITO INTERESSANTE ESSE SEU PENSAR, MAS Ñ SE APROFUNDE, SIGA O SEU DESTINO....

Mirella disse...

"Vista a roupa de domingo", mas sem esquecê-lo.

Socorro Gadelha Fraga Rocha disse...

Myroca, meu QUERIDO IRMÂO,sempre falou que sua inteligência o assustava. Mas acho, que também emociona e nos deixa orgulhoso de você. Continue escrevendo com essa sensibilade linda, mesmo nos fazendo chorar. Bjs de Tia Côca.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nanda disse...

Iaiá linda,
Seu texo é emocionante e me fez aumentar a saudade do seu pai. Amo muuuuitooooo vocês!!!
Da sua prima tia,
Nanda.

Grace disse...

Hoje senti mais saudade de tio Salomão. A lembrança que me veio a cabeça foi a risada gostosa que ele dava quando te aperriava com alguma bobagem.