Eu achei seus óculos hoje, esquecidos no porta luvas do meu carro,
assim, descuidadamente esquecidos. Mas estavam lá, para que você deles fizesse
uso, rapidamente, como de costume, a fim de ler pequenas anotações antes de uma
audiência, de uma palestra, de um discurso. Já que você não volta, já não entrará
no meu carro. Tirei-os de lá e coloquei sobre a minha cabeceira e agora os
encaro estática.
Tentei ver por trás deles, como se procurasse arfante ver através dos
seus olhos, e ser você um pouco. E sendo você, abrandar a minha saudade. Óbvio
que minha visão ficou apenas embaçada, e nenhuma licença poética respeitou meu
imenso e verdadeiro sofrimento. Quisera eu fosse apenas poesia, a perda. Como
em tantas e tantas músicas de amores perdidos, quisera eu, fosse apenas poesia.
Eu tiraria seus óculos, sem rosto úmido, os devolveria para você como numa
brincadeira, como nos meus teatros, lembra? E você bateria palmas.
Não é tão simples assim. Claro que não. Esse cenário de dor vibrante
repleto de objetos que mais parecem personagens. Amantes tristes e
voluntariosos. Utópicos. Não é um cenário de teatro, as cortinas não fecham e
nós voltamos para a coxia sorridentes, sem ansiedade e nem tormento. Ah, não.
Ainda que eu deseje enormemente um faz de contas – e às vezes eu até ensaio,
sabe? – na coxia a agonia é ainda maior.
Foi com seus óculos que fiz esse faz de conta hoje. Coloquei na face, e
ri despretensiosa, querendo tão somente uma nostalgia tranqüila, daquela forma
que acontece quando as lembranças boas são reconfortantes, e não destruidoras
do cotidiano. Porque é mais fácil se ferir do que fazer cócegas em si mesmo.
Esse tempo do faz de contas, do teatro, vai demorar a chegar. E, quando chegar,
bem, não será mais teatro. Não vou precisar encenar nada para lograr meu
desespero.
Hoje não vou tomar minhas pílulas de dormir. Meu psiquiatra não me poupa
de ansiolíticos e hipnóticos. É um homem muito bom. Poupa-me do sofrimento.
Assim, eu não preciso enfrentar noites turbulentas, virando de um lado para
outro na cama, sem conseguir me concentrar em nenhuma leitura até que o sono
chegue naturalmente. Em contrapartida, pouco me recordo dos meus sonhos.
Acontece que, você bem sabe, nos dias de hoje, embora a vida tenha
ficado mais longa – perdoe-me esse clichê que também não me apraz – a pressa é
cada vez maior. Então não há espaço para noites insones, não há espaço para
sofrer. E, ainda que tivéssemos, não creio que em momento nenhum, nos mais
imemoriais dos tempos, tenha existido espaço no espírito humano para tamanho pesar.
Por isso seu avô morreu de banzo, você dizia, não havia benzodiazepínicos! Por
isso Van Gogh cortou a orelha. Por isso eu não vou morrer de banzo, nem amputar
algum membro exterior como uma espécie de somatização voluntária que mostre o
quanto amputada de alma estou. Ainda tenho a sertralina e minhas miúdas
encenações. Além do mais, acessos de surto não é um luxo ao qual pode se dar a classe média.
No espetáculo de hoje, deixei seus óculos sobre a minha cabeceira. Infelizmente,
minha miopia só me permite vê-los através dos meus próprios óculos. Devo
interpretar a mim mesma. Interpreto uma amante serena, que observa os pertences
do amado com aparente lucidez, como quem precisa apenas de uma lembrança por
perto. Mas, claro, é mera interpretação. Na coxia, revelo-me doente e
alucinada. Acalmo-me com divinos fármacos. Ainda assim, dentro do alívio
efêmero da droga, murmuro para mim mesma que deixo seus óculos na cabeceira,
porque espero confiante você voltar.
M.
9 comentários:
Sensibilidade arrepiante. Saudades eternas. Minha solidariedade inifita e "universa". MMS
Sensibilidade arrepiante. Saudades eterna. Minha solidariedade inifita e "universa". MMS
que coisa linda!!
VC ESTA NO MEIO DE MILHÕES DE PESSOAS E SENTE A FALTA DE UMA SÓ OU TALVEZ DUAS.... MAS Ñ DEIXE QUE NOITES VIREM EM NOITES CLARAS, POIS VC DEVERÁ SIGUIR O SEU CAMINHO, UM CAMINHO A QUAL, ALGUEM NUNCA PODE TE CONDUZIR, OU ATÉ MSM TE DEIXOU NO MEIO DESTE CAMINHO. É MUITO INTERESSANTE ESSE SEU PENSAR, MAS Ñ SE APROFUNDE, SIGA O SEU DESTINO....
"Vista a roupa de domingo", mas sem esquecê-lo.
Myroca, meu QUERIDO IRMÂO,sempre falou que sua inteligência o assustava. Mas acho, que também emociona e nos deixa orgulhoso de você. Continue escrevendo com essa sensibilade linda, mesmo nos fazendo chorar. Bjs de Tia Côca.
Iaiá linda,
Seu texo é emocionante e me fez aumentar a saudade do seu pai. Amo muuuuitooooo vocês!!!
Da sua prima tia,
Nanda.
Hoje senti mais saudade de tio Salomão. A lembrança que me veio a cabeça foi a risada gostosa que ele dava quando te aperriava com alguma bobagem.
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