Sou como uma folha arrancada, mas também as folhas arrancadas
não têm raízes? O grande paradigma é que elas caem e se esvaem ao sabor dos
ventos e das brisas. No meu caso, de uma brisa atlântica. É a brisa atlântica
que agora faz meu rumo, e me dá medo que me leve à África, de tão solta que
estou.
Não obstante, fazem-me falta aquelas tardes quentes, de calor
tão lânguido que chegava a arrefecer o coração. Mamãe dizia que devíamos sair
alinhados, mesmo que o linho nos aquecesse mais do que outras vestimentas leves
e mais apropriadas para o semiárido. Sair em linho era sair arrumado, e era
deste modo que nos vestiam para os crepúsculos, na praça do Cristo.
Afeiçoei-me às praças, como me afeiçoei a Charles de
Gaule em Antibes, e quis encher Sousa de chafarizes, na esperança ingênua de
transformá-la em uma cidade mais úmida. Os arfantes e pueris desejos de uma
adolescente que, embora num país distante, sentia falta mesmo era de seu amplo
terraço de piso vermelho numa casa chamada Casa Grande.
Quando eu ainda era bem pequena, naqueles
tempos amorfos, onde tudo que podemos lembrar não são senão sensações e imagens
retalhadas, poucas memórias me vêm tão vivas quanto os finais de tarde de calor
abafado na praça do Cristo em Sousa.
Como disse, tenho muito apreço por praças. Nos meus primeiros anos, tudo quanto eu fazia era me
alinhar para, junto com meu irmão Lafa, sairmos às praças, subir as escadas do
coreto na Matriz, admirar a estátua de vovô José e a árvore plantada por Lella
e Zé Neto no Bom Jesus, sentar nos bancos da André Gadelha até a noite cair,
e esperar, ansiosamente, pelos pasteis quentinhos das querubinas, que sairiam,
pontualmente, às seis da tarde.
Na BomBolado, meu desejo era
sempre o de uma recheada banana Split, mas nunca podia - apenas uma bola de
morango: você não consegue comer sorvete tão grande, diziam-me. E fiquei com sonhos
de banana Split até hoje, como se não pudesse nunca me deliciar com as
sobremesas dos cartazes.
Um dia, fui agraciada com esse direito, e, com
grande desapontamento, na tenra idade de quatro anos, vi que os cartazes nos
dizem mais mentiras que os homens que nos beijam com olhares apaixonados, mas
cheios de sentimentos vis.
Morei em Sousa até a idade de
cinco. Mas minha festa da padroeira continua sendo a Festa de Setembro. Fui à Festa
das Neves em alguns cincos de agosto, aqui em João Pessoa, e acho que em nada
se parece com uma verdadeira quermesse.
Roda gigante só tem sentido se eu
puder ficar frente a frente, com a torre da Matriz. Fitamo-nos sempre com tanta
cumplicidade, como velhas amigas, que até quando ela caiu, eu senti que ainda
estava lá, porque é assim que acontece com aqueles com quem dividimos nossas
vidas: longe dos olhos, mas sempre perto do coração.
Viajei para Sousa tantas vezes
que, no fim das contas, sinto que a minha casa é a BR 230 ou, melhor, a rodovia
Antônio Mariz. E, indo para a cidade Sorriso de carro, tão sozinha, nas sinuosas
curvas da estrada da viração, penso que estou sorrindo para quem pode olhar do
céu, já que o antigo governador que deu nome ao caminho, dizia que, quando em seus voos,
ou discursando do alto de um palanque, sob a luz das gambiarras que parecem acender
aplausos, pensava que Sousa lhe sorria.
É um vale sorridente, pois sim. De
ruas largas, mas feitas de paralelepípedos. E o cheiro mais aprazível do mundo
inteiro é o dos paralelepípedos noturnos, molhados da chuva forte que cai por
sorte na semana santa, ou por destino, no mês de janeiro. E as gramas dos
jardins se enchem de sapos, e as pequenas meninas, pensarão como eu pensei um
dia, sempre em príncipes que um dia lhes namorarão naqueles gramados.
Do sertão fui retirante, mas não da seca. O bicudo que travou
os imensos campos de algodão e trouxe meus pais ao litoral. Uma usina
desfalecida, um apartamento pequeno no 777 da Edison Ramalho. E João Pessoa descortinou-se
para mim como uma imensa metrópole, cheia de luzes que até então eu nunca tinha
visto.
Minhas luzes eram os vagalumes que
perseguíamos no quintal da Casa Grande, e - perdoem-me o bucolismo de uma alma
saudosa - as das estrelas de tempos imemoriais, que eu via da rede do Terraço
de Piso Vermelho, enquanto minha mãe me balançava impaciente, porque nenhum
menear de rede, cantiga de ninar ou colo de quem nos ama tanto era capaz de me
fazer dormir.
Eu só dormia com a voz de barítono
do meu avô e o teclado de vovó, entoando ao longe aquele “negue, o seu amor e o seu carinho...”, ou com o saxofone de Tio
Nias, cheio de baladas de um jazz que nem ele próprio sabia decifrar. O Mal de
Alzheimer tomou o som destes preciosos homens, e me deixou insone até esses
tempos modernos, quando nem mesmo uma velha radiola consegue embalar meu sono.
No lugar de vagalumes, passei a
caçar tatuís e caranguejos na praia de Camboinha. Os tatuís são bichinhos
fugidios que escorregam das nossas mãos, ao tempo em que as ondas se afastam da
areia. Já as conchas são seres mais mansos. Parecem ansiosas para servirem de
colares. E assim é que esfolávamos suas pontas, até fazerem um buraco na ponta,
para transpassarmos por ela um barbante e pendurarmos orgulhosos em nossos
pescoços, como verdadeiros catadores de conchas, de tão frustrados que estávamos
com os tatuís.
Mas a grande frustração era a
ausência de praças, que nenhum sargaço, por mais suculento que se mostrasse,
poderia suprir. A praça do Bom Jesus, animada as seis da manhã pela música
sacra que fazia tocar padre Dagmar. E, quando ele morreu, achei que tinha
morrido todo o sentimento da Igreja, e nem mais me dava medo o Jesus Morto feito
de cera, preso num caixão nos fundos da sacristia.
Eu acreditava de verdade que
aquele Jesus Morto era o próprio Jesus, e, por isso, a minha cidade era a mais
importante do mundo, porque conservava o corpo do Cristo incólume nos fundos de
uma paróquia de arquitetura dos anos 1970. Uma Igreja que antes se assemelhava
a uma repartição pública, e que depois me deu a compreensão de que o Jesus
Morto era o único finado que ali ficaria, já que meus pais foram velados
naquele altar e, muito cedo, antes do que eu queria e esperava, naquele dito
momento de louvor, levados para um cemitério próximo.
Uma cidade cheia de espíritos
vivos, também. Embora a noite seja tranquila, do meu terraço de piso vermelho,
o vento que vem do Aracati me permite pensar que comungam junto comigo o
litoral e o sertão. Sinto em seu cheiro, mesmo que distante, os sinceros
desejos de Iemanjá. Ela diz ”venha comigo”, e eu peço, “deixe-me ficar”. Sento
as cadeiras de balanço na calçada, mais serena do que atormentada por essas
aparentes antinomias. Balanço-me como quem tem sono, bocejo como quem vou
dormir, mas a Aurora vem de assalto, como a princesa do conto que despertou
depois de cem anos, sem ter envelhecido nada, sequer.
É assim a minha cidade. Que faz
mais um ano no Frei Damião, na Guanabara, na Várzea da Cruz, no Alto do
Cruzeiro e em tantos outros bairros onde presenciei comícios que sempre me aconchegaram com
a certeza singela de que não há luzes mais bonitas que as de vagalumes e
gambiarras mal dispostas.
Um dia, amanheci cedo no Angelim,
em rondas de campanha, vigiando aqueles que compram votos. Vi o sol nascer de
longe, emergindo, como para iluminar o Cristo Morto, inerte, na Igreja do Bom
Jesus Eucarístico. Mas não era o Cristo morto o seu desígnio, mas antes o
Cristo erguido na praça dos meus alinhos. O Cristo alto, austero,
misericordioso, como deve ser. O Cristo do milagre da hóstia.
Caminhei até lá intrigada. Vi
algumas velas se apagando com o amanhecer. Aqueles pedidos tão queridos. E, em
vez de pedir por mim, pedi por cada desejo aceso na noite anterior, em cada uma
daquelas velas. Vagalumes, estrelas, luzes de edifícios, não importa. São luzes
da cidade acesa que duram para muito além da alvorada.
O 10 de julho me tomou de assalto,
atraiu lembranças, machucou o coração apertado de quem não pode beijar de perto o
aniversariante que tanto lhe deu amor. Vivo na capital, aprendo no Leão do
Norte, visito a Borborema com carinho. Mas ser do sertão é talvez a tola
esperança de nos acharmos tão fortes quanto uma cidade árida, submersa num vale que sorri. E isso sempre nos valeu.
M.
Um comentário:
se tu escrevia assim 3 anos atrás, fico curiosa pra ler como tu escreve hoje.
fazia tempo que eu nao via um blog tao tao tao bom.
fiquei a madrugada ontem querendo ler sem parar. :}}
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