Quando minha tia Andrea casou com
meu tio Hellosman, ela certamente não sabia que, dentro de muitos anos, estaria
me dando um grande presente. Isso acontece com muita frequência, de as pessoas
que amamos trazerem para nós outras pessoas, para que amemos e sejamos amados.
Apesar de tio Hellosman ser extremamente sistemático, metódico e organizado, ou
seja, o oposto da minha personalidade, nós sempre nos demos muito bem.
Acho que, no fim das contas, é
bom ver e admirar no outro um pouco daquilo que a gente não tem. Eu o admiro bastante e, no melhor dos sentidos,
invejo sua capacidade de ser pontual e preciso em tudo que faz. Mas o que gosto
mais nele, é o fato de ele me compreender nas minhas mais profundas minúcias e,
ao passo em que eu contemplo seu grande aparelhamento para resolver dez mil
questões em claros e luzidios quinze minutos, acredito que ele aprecia minha
imensa leveza e estado de espírito, quase sempre de graça.
Nunca poderíamos mudar de lugar e assumir um
as características do outro – nem em outra galáxia – mas é sempre bom, entre
uma garrafa de vinho e suas controladas quatro doses, sempre se mantendo
alegre, mas sóbrio, trocar ideias sobre os sabores e dissabores dos encontros
intensos que a vida proporciona.
Nestes jantares de família,
desenvolvemos uma brincadeira divertidíssima: escolher, cada um, qualquer lugar
do mundo para onde gostaríamos de ir naquele momento, e descrever como seria a
viagem. Eu me decidi pela Rússia, tia Andrea optou por Paris, minha prima Grace
preferiu Nova Iorque, meu irmão Lafa, ocasionando uma gargalhada geral, pensou
logo em Areia (mas eu mal conheço o brejo paraibano! – justificou – e não é tão
menos frio que esses lugares - complementou, aturdindo-nos). Meu tio
Hellosman, parcimonioso em suas sempre
tão bem escolhidas palavras, disse-nos que queria visitar Antibes, tal como eu
fizera, há cinco anos, pegar um trem para a pequena vila de Eze-sur-mer e
descer a ladeira da cidade em um Rolls Royce.
Como dito, embora eu muito duvide
que meu tio seja capaz de fazer isso, tal como eu fiz, ele é enlouquecido por
essa história. Sempre me pede para conta-la, principalmente na frente de
desconhecidos. Contei-a tanto, até introduzindo novos elementos, que, às vezes,
perco-me no que de fato aconteceu e no que fui criando para incrementar o
conto, já que, como sempre me pus em dúvida se o ocorrido foi assim tão
realmente fantástico quanto o crê meu tio, dá-me medo de não surpreender tanto
os novos ouvintes.
Última justificativa deste longo
prólogo, considerando-se o objeto da prosa, que será até mais curto: meu tio é
muito fã de meus escritos. Há alguns anos já vem pedindo para eu escrever sobre
o rolls royce descendo a ladeira de Eze-sur-mer. Por amor, então, eis o relato.
Aos dezessete anos, ganhei de
presente uma viagem de intercâmbio. Na agência de viagens, apresentaram-me um
sem número de opções nos Estados Unidos e Inglaterra, para que eu aprimorasse
meu inglês. No fim da lista, havia uma alternativa pouco levada em conta: a
Riviera francesa.
Meu francês era ainda raso, à
época, o que me levou a pensar que quatro meses na Côte d’Azur não fariam muita
diferença. Era melhor continuar na Aliança e, até atingir um nível mais
avançado, fazer esse passeio. No almoço de domingo costumeiro, meu tio deu o
voto de divergência: melhor a França. Nesses meses, você vai voltar falando
francês melhor do que Carla Bruni. Se não, o charme que sessenta dias em
Antibes vão lhe dar não valem o vocabulário em inglês desse escasso tempo.
Não titubeei mais. Comprei um
dicionário, alguns livros e a passagem de avião. Aportei no aeroporto de Nice
em um dia bastante chuvoso, mas, mesmo assim, pareceu-me o aeroporto mais lindo
do mundo. Um gentil alemão veio me buscar: era estudante do Centre
International d’Antibes e funcionário. Pagava o curso com esses pequenos
serviços. Falou-me que Nice era bem próxima de Antibes e que, depois, eu
poderia pegar um trem para conhecer melhor a cidade.
Cheguei à escola, onde, para
minha felicidade, depois de um pequeno teste, fui inserida em uma classe para
alunos de nível intermediário. Chegando à residência, outra grande alegria: meu
quarto tinha uma sacada de onde se avistava o mar azul turquesa e os aviões que
não paravam de nos sobrevoar, devido ao intenso fluxo de veraneio nas paragens.
Esse terraço me rendeu algumas das
melhores noites da minha vida, regadas a vinho de três euros, imensas baguetes,
rodelas de tomate e vários vidros de azeite – motivo dos cinco quilos a mais no
retorno.
Além disso, a área comum contava
com um bar excepcional. Não que ele tivesse nada de outro mundo: sequer serviam
petiscos. Mas um chope gigantesco custava o módico preço de um euro e a música
era escolhida por nós. Sessões de gaitas escocesas, folclores alemães e muito
Bob Dylan faziam parte da trilha sonora.
No calor lânguido da Riviera,
rodeada por uma diversidade de pessoas e histórias agradáveis, jantares às oito
da noite ainda admirando o por do sol, permissivos de longas esticadas nas praias,
bronzeando-me, comendo amendoins e lendo romances de Fitzgerald, transcorreram
quase quatro meses, para o meu pesar, bastante ligeiros.
Com vestidos soltos, claros e
leves de passeio, eu me sentia uma verdadeira artista, sentada em cafés e
fazendo anotações sobre os transeuntes, iniciando meu custoso vício pelo tabaco
(os cigarros oneraram em muito minha viagem) e por deliciosos sorvetes
italianos.
Havia os pequenos passeios para
as cidades próximas. Minhas amigas queriam visitar as mais famosas, como
Cannes, ou circular demoradamente e repetidas vezes por Nice. Tive que fazer
sozinha um roteiro, já antes escolhido, pelos pequenos vilarejos para pouco
antes da fronteira italiana. Um deles era a pequenina Eze-sur-mer. Ninguém se
interessou pela ideia. O lugar ficava no alto de uma encosta, tinha apenas uma
igreja antiga, ruas estreitas e a vista mais bonita de toda a Costa, na minha
opinião.
Tomei um trem que chegava até um
ponto onde se pegava um ônibus. Esperei cerca de uma hora na parada, ao lado de
dezenas de turistas ingleses velhinhos. Durante o caminho, numa ladeira
sinuosa, com mais curvas que o corpo da princesa de Mônaco, tranquei-me em
minha própria mente, absorta diante da paisagem estonteante. Claro, mas muito
claro, sobretudo para aqueles que me conhecem, que não prestei atenção em
nenhum dos avisos que o motorista deu quando nos deixou, dos quais só tomei ciência
várias horas depois: só havia um ônibus que saía da cidade, em apenas um
horário, pontualmente, às seis da tarde.
Fiquei deliciada: lá em cima, o
ar era mais frio, a vista mais bonita e eu estava, finalmente, sozinha – não aguentava
tagarelices por muito tempo, ainda que gostasse muito de estar na residência
com meus amigos. Acendi um Marlboro light e saí sem destino pelas ruas
inclinadas, estreitas e cheias de ladeiras. Vi a igreja velha, fiz algumas
orações, sentei no banquinho da praça na frente, embaixo de uma gigantesca
árvore de não sei o que, que me fez sombra até eu me cansar dos meus próprios
pensamentos. Desci para a cidade baixa, consultando restaurante por
restaurante, mas, como ainda eram cinco horas, nenhum estava aberto “ni même
pour un petit vers de vin”.
Chateada, é que me sentei num bar
que mais parecia um boteco da Lapa, pedi
uma cerveja, alguns amendoins e uns vários guardanapos, já que meu
caderno de notas estava completamente cheio. Pus-me a ensaiar rabiscos e a
escrever, sem contar quantos copos já havia entornado.
A noite caiu, uma enorme lua
cheia e amarela parecia sair de dentro da encosta e eu não podia estar mais
saciada. Era o melhor cenário para uma pseudoartista, que, ante a ausência de
seriedade inerente aos 17 anos de todos nós, como bem ensinou Rimbaud, fazia-me
sentir a maior das artistas. Ali era um pedaço da minha vida que eu jamais
esqueceria, sobretudo quando estivesse recebendo o nobel da literatura.
A sozinhez de uma moça charmosa,
embriagada e escrevente é um atrativo maravilhoso. De repente e não mais que de
repente, o resto não era o silêncio: minha mesa agora eram quatro, onde se
sentaram um casal de turistas americanos, um grupo de jovens , também pretensos
artistas franceses, um sedutor italiano
de meia idade e uma senhorita alta, magra, desbocada e cheia de ideias
socialistas.
Era um filme de Woody Allen.
Desenhei e fui desenhada. Escrevemos poesias em conjunto, recitei alguns versos
de Vinícius e inventei folclores brasileiros: mas como vocês não sabiam que, no
Brasil, antes do Natal, é costume caçar coelhos e servi-los no lugar do peru?
Ninguém lhes contou que os índios ainda comem bispos portugueses,
surpreendendo-os quando das visitas nas arquidioceses locais? Bem, é um
resquício da catequização, sabem?
O dono do bar emprestou um violão
e, se alguém soubesse, a internacional socialista teria sido cantada. No lugar,
entoamos algumas canções dos Beatles e eu tentei, sem sucesso, puxar um coro de
Belchior.
A noite caiu, a lua subiu mais
alta, o sono chegou de assalto. Os artistas franceses propuseram dar
continuidade à festa, mas, com o pouco de razão que ainda me assistia,
lembrei-me que, se voltasse depois de duas da manhã, talvez encontrasse a
residência fechada. Despreocupada, informei, para a tristeza de todos (longos
“ahs” e sinceros suspiros me foram dispensados), que precisava pegar o ônibus
de volta. E ainda havia a viagem de trem. Trocaram olhares furtivos, e logo fui
informada que só havia ônibus no dia seguinte. E para descer? “Ninguém desce
depois da meia noite, mademoiselle”. Estava
sitiada. Mas eu preciso voltar.
Ofereceram-me a opção de pernoitar na casa de alguns deles, o que, também
assistida pelo fim de juízo que ainda tinha, rejeitei, educadamente. Um hotel,
haveria? Lotado. Taxi? O único taxista da cidade estava tão ébrio quanto eu.
Bem, pode-se sempre chamar o
Loic. Mas o tal de Loic parecia uma alternativa complicada. Loic servia de
chofer para turistas ricos, tinha um rolls royce antigo e não cobrava barato.
Mas, que fazer, era minha única saída, literalmente. Eu voltaria para o Brasil
dentro de poucos dias e, como havia economizado meu dinheiro, gastando-o,
basicamente, com álcool e cigarros, podia me dar ao luxo de descer a ladeira em
um rolls royce.
Assim, ligaram para Loic, que
chegou em seu belíssimo automóvel, fardado, como deve ser, já abrindo a porta
para mim como se eu fosse descendente da casa de Orleans e Bragança. Despedi-me
de todos alegremente, com cumprimentos de realeza, cheia de endereços na mochila,
com promessas de cartões postais jamais cumpridas. Entrei no rolls royce no
estilo de uma grande dama, imaginando se Grace Kelly já teria vivenciado
instante tão sublime.
Loic era reservado, mas eu ainda
estava falante. Abri os vidros do carro e sentei-me na janela como costumo
fazer nas carreatas em Sousa. Fui, instantaneamente, proibida, pela
suntuosidade do carro e sinuosidade da ladeira. Mas é claro que a mademoiselle não queria se acidentar,
correto? Dizendo isso, meu chofer abriu o teto solar, e, no segundo subsequente, minha silhueta
emergiu do capô, de braços abertos para abraçar, ao mesmo tempo, o mar
espelhado, a lua enorme e amarela e os invariáveis aviões que traziam novos e
brilhantes espíritos para iluminar a Riviera.
M.
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