Do TDAH
Hoje eu acordei bastante preocupada com minha capacidade
concentração. Há muito não sentia isso. Desde a época do colégio, devo dizer.
Durante a faculdade, por eu ter me apaixonado, perdidamente e logo no primeiro
ano, por Miguel Reale tanto quanto sempre fui por Tolstoi ou Marília Arnaud,
não tive as dificuldades que sofri enquanto estava, sobretudo, no ensino médio.
Quase mato meus pais de preocupação. Eles não conseguiam
compreender como alguém que lia tanto, literatura já avançada para minha idade,
que passava os domingos trancada no quarto, rodeada pela Folha de São Paulo e
contos de Córtazar, pudesse ter alcançado a façanha de ter ficado em recuperação
em todas as matérias, à exceção de história. “Ué, mas você não lê tanto?” –
minha mãe perguntava, com um misto de sarcasmo e repreensão – “Não é tão boa em línguas?”. Isso
porque, à época, eu já falava inglês e francês em certo avanço. Sim, eu havia
ficado em recuperação em português e inglês, mesmo sendo boa em línguas. Eu
conseguia escrever e falar, mas como explicar
orações subordinadas e expressões adverbiais?
Não
me orgulho disso. Como também não me orgulho de ter passado no segundo ano
científico pelo temido conselho de classe, porque os professores tiveram um
pouco de misericórdia e talvez um pouco de bom senso (a frustração de uma
reprovação para uma adolescente talvez seja pior do que o desconhecimento total
da trigonometria e geometria espacial).
Meu
primeiro ano do ensino médio, em especial, é que foi, de fato, o período de
crise mais grave: tinha insônias torturantes, chegava a ficar três ou quatro
dias sem dormir. Levaram-me para passar um mês em Sousa, a título de castigo.
Resultado é que eu saía de casa na surdina, fazia rondas à pé pela cidade,
jogava baralho com alguns vigias e iniciei meu caminho na sinuca e na cerveja.
A noite é perigosa para quem tem só catorze anos, e mais perigosa ainda para
quem tem catorze e acha que tem cinquenta
Foi
nesse tempo também que comecei a tomar café como quem toma água: apesar de sentir
sono durante o dia, não conseguia mesmo dormir. Então me enchia de café para
viver o dia como um zumbi. Tinha um amigo especial, Seu Rubismar, que tinha uma
loja de CDs. Ficava lá das duas da tarde até à noitinha, ele me mostrando os
sons da década de 50, 60, até as novidades dos dias atuais, ele, o primeiro
pirateador de cinquenta anos da Paraíba, no meu sentir. Em 2003, 2004, já
baixava tudo pela internet.
Um
dia, Seu Rubismar encontrou papai e contou-lhe de nossa amizade. Meu pai ficou
feliz e surpreso. Disse-lhe que eu era muito inquieta. Seu Rubismar tomou
aquilo com espanto: inquieta? Ela passa a tarde inteira sentada, tomando café e
ouvindo música.
Daí
surgiu, mais uma vez, a ideia de que meu problema não era de concentração ou
inquietude, mas pura preguiça. Mamãe voltou a me ralhar: você vai ficar igual
aos Pordeus, lendo, ouvindo música e tomando café sem parar. Os Pordeus são a
família do meu avô, do pai da minha mãe, que têm uma veia artística muito
desejada por mim, não inscrita nos meus genes, infelizmente.
O
grande paradigma a ser enfrentado era como eu conseguia me concentrar tanto em
algumas atividades, até demais, ao ponto de conseguir terminar um longo romance
em um final de semana, aprender francês em um ano, ao passo em que era incapaz
de passar quinze minutos resolvendo questões de física, matemática ou até mesmo
– pasmem - estudando geografia.
Para
mamãe, como disse, era simplesmente preguiça e capricho. Eu só fazia o que
tinha vontade e ponto final. Papai era um pouco mais compreensivo, porque
achava que eu não podia ser um fracasso total na vida já que conseguia pelo
menos ler. Falava, por vezes,
brincando, quando mamãe explodia comigo: ela pode ser crítica literária, né? Ou
de cinema!
Nada
disso era bom para mim. Apesar de muita gente me admirar e me achar bacana, eu
sofria muito por não ter um desempenho no mínimo regular no colégio. Por não
ter ideia de como passaria em um vestibular, faria faculdade, por não saber em
que profissão me encaixaria.
Fora
a concentração, havia outros problemas. Desorganização extrema (não adiantava
arrumar o quarto pela manhã, à noite ele já estaria, novamente, um caos),
paixão por aventuras (pegar carona com desconhecidos, inclusive em países
estrangeiros, como bem me lembrou minha prima Carol, recentemente, alugar
teatros fingindo ser uma adulta, pedir motos emprestadas e sair desembestada
pela cidade), total inépcia para a pontualidade, sobretudo em razão dos meus
horários pouco convencionais.
Assim,
eu carreguei durante minha adolescência inteira um sentimento de insuficiência
e incompetência extremos, que me conduziram a uma baixa autoestima, e à
sensação suprema de incapacidade. Não raro, ficava apática e muito, muito
melancólica.
Um
dia, estávamos numa livraria, eu e mamãe e vimos um livro chamado “Mentes
Inquietas”, da mesma autora de “Mentes Perigosas”, que fez sucesso
recentemente, Ana Beatriz Barbosa. Acho que o livro acabara de ser lançado.
Mamãe nem leu a sinopse no verso. Pronto, é isso aqui que você é, uma mente
inquieta, ela sentenciou. Eu li o livro primeiro, de assalto. Caladinha, mandei
que ela lesse.
Descobrimos
que existia uma doença, sim, doença, chamada Transtorno do Déficit de
Atenção com Hiperatividade, e que, pior, eu me encaixava perfeitamente na
descrição dos “sintomas” da doença. Naquele tempo, o termo mais usado era DDA –
Distúrbio do Déficit de Atenção, sendo a hiperatividade um aspecto da doença,
sendo esse aspecto o que menos me aproveitava. Eu não era de um todo serelepe,
traquina, de subir em árvores. Mas roubava motos, carros (aprendi a dirigir aos
doze anos) e não conseguia dormir.
Não
foi a solução de todos os problemas, não. Ao contrário. A preguiça tinha
conserto, correto? Mas e uma doença? Um transtorno mental? Acho que mamãe se
aperreou mais ainda, para ser sincera, porque continuou dizendo que eu tinha
mesmo era síndrome de Macunaíma. Foi minha irmã mais velha, que já era médica
residente, que pensou que aquilo tudo podia ter algum sentido, sim, e convenceu
meus pais a me levarem a um psiquiatra no Recife.
Para
uma adolescente já cheia de conflitos, a ideia de precisar ir a um psiquiatra
não foi das mais confortáveis. Além de incapaz e inapta, senti-me muitíssimo
frágil. Na primeira consulta, o médico disse sem rodeios que eu tinha, sim, o
tal Distúrbio de Atenção.
Mamãe
não se conformou. Queria uma tomografia ou algo similar que provasse isso.
Insistiu na teoria da preguiça. Disse da minha paixão por literatura, música e
cinema. O médico, gentilmente, perguntou-lhe mais uma vez se ela tinha lido o
livro que havia nos levado ali, e se ela se recordava de um tópico que falava
do hiperfoco.
Ela
continuava relatando como eu passava quatro ou cinco horas lendo, “só lendo,
doutor! Vê três ou quatro filmes em sequência! Como essa menina tem problema de
atenção?”. Pois bem. O doutor informou que preferia não chamar exatamente de um
problema de atenção, mas de um desvio. Que minha atenção era extremamente, mas
de uma forma muito extrema mesmo, direcionada para os assuntos pelos quais eu
sentia mais interesse. Que o fato de eu ser espacialmente desorganizada se dava
também por eu devanear demais.
Claro
que mamãe não engoliu essa conversa. Até eu, até hoje, e depois vou explicar
melhor, fico um tanto quanto reticente em relação a essa tese. No dia mesmo
fiquei. Porque, ora, se eu só conseguia atentar para o que gostava é porque
tinha preguiça do resto das coisas e fazia tão somente o que desejava. Ou seja,
caprichosa e preguiçosa, mesmo. Mas, segundo o psiquiatra, não era uma escolha
minha. As pessoas “normais” conseguiam direcionar a atenção, os portadores (e imaginem que susto é ouvir
essa palavra) de TDAH simplesmente não conseguem.
Mas
havia um remédio, sim, e não era só o café – pois não é que até meu vício pela
cafeína restou explicado? Era uma droga chamada Ritalina, e eu tinha que
começar a tomá-la imediatamente. No mesmo dia compramos, no dia seguinte
comecei a tomar. Os efeitos foram devastadores, para mim. Perdi alguns quilos e
consegui me focar em quase tudo e, uma novidade, em biologia, porque fiquei
admirada com aquilo que o doutor explicou serem os responsáveis pelo meu mal:
os neurotransmissores. Não eles em si, mas a deficiência de um em específico, a
dopamina. Até hoje não sei como funciona, mas, ao que parece, a ritalina regula
os níveis de dopamina no cérebro.
Para
o espanto e maravilha de todos, tirei vários dez em biologia e até um em
matemática, seguidos de um nove em física. Por outro lado, fiquei muito calada
e abatida. Hoje não sei realmente se foi a ritalina que me deixou assim. Talvez
a ideia de ter uma doença, de precisar de um remédio, de ser tão jovem e me
perturbar tanto tenham sido fatores mais fortes para gerar em mim um aspecto
sorumbático, ao ponto de o professor de física dizer que gostava mais de mim
quando eu tirava cinco e conversava mais. Entretanto, no auge dos meus
complicados catorze anos, a explicação mais plausível é de que tinha sido a
droga, sim.
Então,
tomei uma decisão bastante séria: parei de tomar a ritalina sem dizer a
ninguém. Meus pais continuaram comprando o medicamento por mais uns dois anos,
sem sequer saber que eu só o tomei por alguns meses, oito ou nove no máximo. Às
vezes eu fazia a revenda para uns CDFs que queriam se concentrar ainda mais.
Outras vezes só jogava no lixo, mesmo.
Aos
dezessete anos, agarrei-me à tese de mamãe: eu era preguiçosa e tinha que
corrigir isso. Não precisava de um medicamento. Pensei que essa história de
TDAH era balela para alimentar a indústria farmacêutica. Veio a faculdade e,
como disse, meu hiperfoco foi bem vantajoso, já que podia estudar por horas a
fio Direito Constitucional e Processual Civil. Não tive a mesma sorte com o
Direito das Coisas. Até hoje tenho sequelas de tanto repassar páginas falando
sobre o direito de sequela.
A
maturidade diminuiu alguns arroubos. E assim fui me ajustando. Outro dia, li um
tuíte de Ana Beatriz Barbosa, que também tem TDAH, dizendo: “perguntaram-me se
eu tive TDAH. Eu não tive, eu tenho. Só aprendi a viver com ele”. Pesquisei
sobre TDAH na vida adulta e aí vi que continuo me encaixando direitinho na
descrição dos portadores. Não quero dissertar sobre isso, já adentrei demais na
minha vida pessoal. Entretanto, li um interessante dado: apenas um percentual
de 30 a 50% das crianças com TDAH continuam a sofrer do mal na vida adulta.
Desconfio muito disso. Como disse Ana Beatriz, a gente aprende a viver com a
desatenção, com a desorganização e vai ajustando nossa vida para que esses
aspectos não nos prejudiquem tanto. Alguns conseguem fazer com um grau menor de
maestria e, por isso, são inseridos no percentual acima mencionado.
Então,
se esse ajuste é possível, a doença existe? Bem, hoje, como mamãe, eu queria
muito que uma tomografia me provasse. Não sei se os Pet-scans fazem isso, mas,
enfim, parece que ainda temos que confiar na subjetividade psiquiátrica que, cá
para nós, não é das mais confiáveis, e não sinto vergonha em dizer que falo por
experiência própria. Claro que mamãe não me levou só em um psiquiatra. E,
depois, mais tarde, quando ela já tinha falecido, visitei alguns, mais por
tristeza do que por desatenção. Encontrei muitos irresponsáveis e recebi
diagnósticos bastante confusos. Por isso, prefiro resolver meus dilemas com a
psicanálise, que é subjetiva, mas não inventa de medicar e, pelo menos não na
minha vivência, também não rotula.
Já
com 21 anos, descobri que um dos papas do TDAH no Brasil, o Dr. Salomão
Schuartzman, estava em João Pessoa, para uma conferência sobre autismo
organizada pela minha tia. Depois de muita persistência, consegui uma consulta
com ele (até porque também queria um autógrafo do seu livro, que tinha desde os
catorze anos). É um senhor muito sereno, que me ouviu atentamente e confirmou,
sim, o meu diagnóstico de déficit de atenção. Eu posso não tomar a ritalina?, perguntei.
Era o meu maior medo, dada a malfadada experimentação adolescente. Pode, ele me
respondeu tranquilo. Só vai ser mais difícil, mas também acho que você já sabe
como é.
Não
sou contra fármacos para a mente. Acho que falta de dopamina é o mesmo que falta
insulina, e não podemos nos furtar a toma-la. Todavia, como os efeitos da
ausência da substância são diversos numa e noutra enfermidade, ainda posso me dar ao luxo de arriscar
os meus métodos e minha capacidade de transformação.
Passei
muito tempo achando que o cérebro era algo estanque, que éramos determinados
pelo oráculo genético de Steven Pinker, sem alternativas. Hoje, penso que,
embora dentro desse oráculo genético, há algumas opções. Pode ser pueril. Minha
irmã mais velha ainda insiste para que eu tome a ritalina, mas minha
resistência a ela foi profunda, porque afetou um lado da minha personalidade do
qual eu sempre gostei muito: minha espontaneidade, extroversão. E perder isso
novamente, ainda que por alguns meses, não me é compensado por conseguir ler
algumas páginas a mais. Pelo menos por enquanto.
Algo,
todavia, há de ser advertido, para pais e adolescentes: o TDAH existe, não é
uma invenção da indústria farmacêutica, nem uma desculpa para não estudar. Mas
vejo uma profusão do TDAH sem limites. Observo que alguns pais parecem querer
se furtar da responsabilidade de compreender porque seus filhos não estão bem
na escola, e aí empurram ritalina ou concerta (que já foi, inclusive, taxado de
a droga da obediência) goela abaixo. Não é uma simples desatenção que
caracteriza o transtorno, e a irresponsabilidade de alguns pais e médicos ao
aceitar e fazer o diagnóstico de forma precoce, respectivamente, pode ser
extremamente maléfica para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Já
outros pais, como os meus, por exemplo, podem ter uma atitude relutante no que
tange à aceitação do diagnóstico, e isso também pode ser prejudicial. Vale
lembrar que não é só a droga e, principalmente, ela, isoladamente, que ajuda a
combater os efeitos do transtorno. A terapia é uma excelente medida, no meu
caso, em particular, a melhor. Essa relutância pode acarretar, como acarretou
para mim, em baixa autoestima, sensação de angústia e impotência. Até hoje,
sinto minha confiança assaz abalada, principalmente no campo profissional.
Na
faculdade, um professor veio me contar que seu filho de oito anos tinha sido
diagnosticado com TDAH, sendo a hiperatividade o aspecto mais forte da doença
nele. Disse-me que não iria fazer nada, porque não queria mudar a personalidade
do filho. Apesar do baixo rendimento escolar, achava-o perspicaz e inteligente.
Essa visão é interessante, mas também pode ser maléfica. A droga pode até ser
descartada, mas o alarme do diagnóstico não pode ser sumariamente rejeitado.
Muitas vezes, só a consciência do problema é suficiente para que se façam
arranjos no cotidiano da pessoa e, assim, ajustá-la para o justo cumprimento
das suas responsabilidades.
Só
quem tem TDAH de verdade e sofre com isso sabe que não é um alento ouvir que
TDAH é o mal dos gênios.
Conheço
adultos mais velhos que eu que até hoje têm sérios problemas profissionais,
pessoas com alto grau de inteligência, mas que não conseguem utilizá-la, não
raro por problemas sérios de confiança, por terem sido taxados de preguiçosos e
burros na infância. Comentários desta ordem podem não vir dos pais, como no
caso do meu professor, mas de professores e colegas de classe.
Tive
que fazer muitos e muitos ajustes na minha vida e ainda sofro com os problemas
advindos do TDAH. Tenho insônias recorrentes e embora não deixe de cumprir
prazos, muito frequentemente deixo as atividades para o último momento, mas
tento me disciplinar. Meu cuidado é redobrado. Um esforço diário.
Se
TDAH é simplesmente jeito de ser, modelo de personalidade, a cada dia eu
acredito mais que não. Entretanto, se um modelo de personalidade contém
aspectos que prejudicam de forma maior no nosso cotidiano, é imperioso seja
feito um controle diuturno, aplicando-se doses diárias de ordem e obediência em
nós mesmos.
Sei
que muita gente acha besteira isso de transtorno mental. Tudo o que posso dizer
é através de minha vivência, o que aprendi com o meu próprio sofrimento. E é um
grande sofrimento não ter controle sobre si mesmo, ainda mais em um mundo tão
cheio de overachievers. Invejo essa
gente de disciplina militar, que acorda cedo, corre na praia, estuda, é bem
sucedida e bronzeada sem risco de câncer de pele. Eu esqueço constantemente o
filtro solar, até quando vou à praia (ainda bem que vou pouco) nesta era em que
“use filtro solar” virou bordão.
Ainda
passo por poucas e boas, porque, quando não consigo me concentrar, saio do Alto
Branco e vou bater em Massaranduba. Porque tenho medo de fazer provas,
arrisco-me pouco onde devo me arriscar e, às vezes, passo dos limites onde os
limites devem ser bem estritos. Mas ainda há espaço para essa gente cinéfila, que, mesmo não tendo dom para overachiever, consegue redescobrir toda a alegria e esperança do mundo num longa-metragem
de Claude Lelouch.
2 comentários:
Simples, elegante e harmonioso.
Ass.: Clóvis
Gostei do texto, mas querida com tudo o que sofri com TDAH prefiro mudar de personalidade msm. Sofri tanto preconceito e fiquei tão estressada que hoje com 28 anos tomo anti depressivo e tranquei a faculdade, passei mal com a ritalina. Cada um pensa de uma forma, mas agarre a chance de poder tomar remédio. Vou tentar outros agora e creio que vou acertar. Tudo de bom pra vc.
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