Seis meses depois que mamãe morreu, fui à Casa
Grande, como chamamos a casa de nossa família em Sousa, na ocasião do
aniversário de Lafa, e encontrei apenas uma tal “Casa dos Espíritos”, um lugar
abandonado onde eu cri que jamais poderia achar qualquer sinal de aconchego. A
mansão era apenas um mar de lembranças, material vivo para a crônica. Todavia,
de um súbito, percebi que o silêncio monástico era disfarce, visto que havia e
há memória falante em cada tijolo, móvel, azulejo, espelho, nas escadas e nos
mais recônditos aposentos (apesar de ser mesmo isto a idéia de uma casa dos
espíritos). Não ouvia a música sacra da Igreja em frente, tampouco a voz
estridente de Padre Dagmar, que havia nos deixado também há pouco. Eu sabia que
isto se dava apenas ao fato de não ser domingo. No entanto, mais esta ausência
causava a impressão devastadora de que todo o Universo que eu conhecera e nele
vivera um dia havia de repente desaparecido.
Mas agora, mais uma vez, quero afastar essa imagem desoladora. Passado um tempo, papai tornou à cidade e, novamente, encontrei família, quartos cheios , multidão, geladeira cheia de comida comprada somente para mim e meus irmãos, lençol com cheiro de amaciante, bolo em cima da mesa, novas roupas, escova de dente, toalha e sabonete em cima da cama, enfim, tudo em festa. Entendi que é uma casa que está sempre à espera, com os seus espíritos, a fazer folia com a aproximação de seus donos. Para a casa, entre nós e a leve brisa que vem do Aracati e enche aquele vale de maresia e desejos de Iemanjá, não há qualquer diferença: são presenças certas, muito embora o vento do Aracati, por ser dos fluxos divinos, é de comparecimento infalível.
Compreendi, então, que meu juízo era falso, que sempre fui por demais cética e pessimista, nunca uma entusiasta da força e da obstinação, como é a Casa Grande. Compreendi ao ver meu pai deitado na cama, conversando no celular e transbordando, senão felicidade, uma estranha alegria. Um assombro, para mim, que surgia nostálgica e ungida de melancolia. A TV ligada e as várias xícaras de café em cima da mesa de apoio deram-me a sublime sensação de que alguém ainda vivia ali, ou pelo menos resistia de forma fiel.
Eu sinto falta deles.
Não tinha a menor idéia do que nos esperava naquele dia 7 de um dezembro que seguia tão feliz, quando mamãe morreu. Agora, já conheço bem o angustiante desejo de tocar, ter, interagir, ouvir a voz de alguém que simplesmente não existe mais. Embora já aceite com serenidade e como companheiras a dor e a saudade, mais uma vez não tenho a menor idéia do que nos espera, depois deste último dia 25 de um novembro que seguia faceiro e jovial. Mas a vida nos é sempre lançada à queima roupa, por vezes, com uma violência sem igual e, para evitar o sofrimento, resta a opção de lamuriar-se e viver dentro de si uma vida paralela, onde tudo funcionaria tal como quiséssemos, ou apenas sofrer e, em sofrendo, fortalecer o coração.
Certa vez, viajando para Sousa, a medida em que entrávamos nas áridas terras sertanejas, mais meu pensamento caminhava sorrateiro para o terreno vasto e duro do passado. Sei que, embora doloroso, é também precioso fazê-lo sempre, a fim de que não se dispersem nossas recordações e fujam para inalcançáveis confins do espírito. Que recordar é viver, ah, isto é precioso.
Passado e presente são indissolúveis, estão
para sempre unidos, passo a passo, um se transformando no outro, trocando as
máscaras, construindo sentidos, produzindo o dinamismo da vida. A vitalidade do
passado depende do nosso potencial de mergulharmos dentro de nossa própria
alma. Quanto maior essa capacidade, mais
fácil torna-se esquecer do que sentimos agora, no momento imediato: o tato, o
cheiro, o paladar, a visão e a audição do presente. Assim, facilmente nos
transportamos para o que cremos ser um longínquo pretérito. E é aí que
comprovamos Bach: longe é um lugar que não existe. Os momentos vividos são
acessíveis, andam conosco em nossos corações e, sendo assim, também as pessoas.
Se assim dou vida à minha memória, nunca negligenciando o presente (pois este também será memória um dia), estou junto dos que deixei e dos que me deixaram, ainda que com dor e pesar.
Eu percebo que estas feridas são como as dos
diabéticos: não cicatrizam o suficiente e, vez ou outra, acabarão abrindo e
sangrando. Só sabem aqueles que perderam criaturas muito especiais e queridas.
As pessoas dizem que o tempo cura tudo, mas não isso. É preciso ter paciência e
não se desesperar quando a ferida abre, por alguns dias, meses, talvez.
Paciência, serenidade e aquele velho bordão: aproveitar as pequenas felicidades
enquanto a grande não chega. Há sempre uma tarde bonita, uma lua cheia
(veremos, aproximadamente, 936 luas cheias ao longo de nossas vidas, e eu acho
bem pouco), um livro que toca sua alma tão profundamente que você gostaria de
tê-lo escrito ou vivido naquele lugar, com aquelas pessoas, naquele tempo,
sendo uma pessoa diferente. Há sempre uma idéia nova, algo para produzir, um
bolo de chocolate pra comer e, sobretudo, há sempre alguém precisando de ajuda,
e a vida perde todo o sentido se nossa capacidade de servir não é
utilizada.
A Sousa, primeiramente, do labore invictum, seu lema oficial, que casa perfeitamente com a Sousa de Aline e Salomão Gadelha, qual seja, a Sousa da água de graça, do DAESA, a Sousa da Saúde Pública modelo para todo o Brasil, com perfeita estrutura de Saúde Mental (CAPS, inclusive infantil e álcool e drogas – um dos primeiros da Paraíba – e as residências terapêuticas), a Sousa que recebeu, através dos meus pais, a primeira unidade do SAMU do interior do Nordeste, a Sousa da Otoclínica, da Policlínica, de 100 por cento de PSF, das Farmácias Básica e Popular, a Sousa, única cidade da Paraíba na qual seus gestores tomaram a iniciativa de pagar dois salários mínimos para os Agentes Comunitários de Saúde; a Sousa do Centro Cultural Banco do Nordeste, da varredura do preconceito, com a construção do Centro Calon de Tradições Ciganas e o emprego de ciganos nas mais diversas funções públicas; a Sousa do Credendo Vides; do fortalecimento da agricultura familiar através do programa Compra Direta e do Projeto Mandala; a Sousa de mais de 300.000 mil metros quadrados de pavimentação, de mais de 300 moradias, da construção e reforma de praças; a Sousa da educação, com a instalação do primeiro Telecentro da Paraíba, da abolição do transporte escolar em carros de pau-de-arara, da informatização de todas as escolas municipais, da construção da Indústria do Conhecimento; a Sousa do Turismo, com o Festival do Coco, evento conhecido em todo o Nordeste, do Carnaval Molhado, do Festival dos Dinossauros, do Reveillon em São Gonçalo.
Foi, efetivamente, um governo realizado a quatro mãos, no qual as pessoas sabiam diferenciar os méritos de cada um. Por vezes, escutamos dizerem – isto foi obra de Aline; isto foi obra de Salomão. Mas o conjunto restou harmônico e especial, como era a maneira que os dois se relacionavam.
A Sousa do Petróleo.
O engajamento do meu pai na luta pelo petróleo, foi uma missão que
contemplou não apenas a municipalidade pela qual era responsável, mas toda a
Bacia do Rio do Peixe. E, provando que não somente os detentores de cargos
eletivos têm o encargo de lutar pelo desenvolvimento de nossa região, foi até o
fim acreditando no alargamento das possibilidades da terra, pois como ele
costumava dizer, o Nordeste ainda está todo por fazer. Há imensos descampados
entre uma cidade e outra passando pela BR-230. Meu pai sonhava com a ocupação
industrial e comercial de tais espaços, sendo o ser humano contemplado com as
benesses deste progresso.
A Sousa do Petróleo, cuja luta ele iniciou e a ela dedicou-se como um
verdadeiro sacerdote, participando de todas as sessões da conseguiu
que 12 blocos da bacia do Rio do Peixe fossem arrematados por 4 empresas. Participou de várias reuniões com
representantes de empresas, como a Shell, e de entidades representativas do setor,
como o IBP.
É a Nova Sousa. A Sousa do
Ouro Negro. Lembro agora as palavras do diretor da UBX - empresa que possui o controle da Tarmar,
compradora de um dos blocos da bacia do Rio do Peixe -, Caio Ferreira Marques, que
elogiou a dedicação do meu pai na negociação. "Pela primeira vez eu vi um
prefeito buscar investimentos desta forma".
Afastando o amor e a admiração de filha e
falando como crítica política e mera espectadora de todo esse processo, afirmo,
com solidez e com o amparo das opiniões de diversos outros, que Salomão Gadelha
foi o protagonista da conquista do petróleo na Paraíba. Obviamente, não agiu
só, valeu-lhe a crença de seus familiares e amigos mais próximos, que lhe davam
a confiança para seguir em frente – não que ele precisasse, dada sua notória
obstinação – pois a grande maioria julgava tais ações fruto de mais uma de suas
tão conhecidas polêmicas, filhas de mais uma loucura.
Mas a loucura é a característica mais forte
dos visionários e revolucionários. Lembrem daqueles que um dia foram
considerados anarquistas, arruaceiros, foras-da-lei, encrenqueiros perigosos,
loucos, por fim. Não foram estes que
derramaram chá na Baía de Boston? Não foram estes que derrubaram a Bastilha?
Não foi aquele que construiu Brasília? Não foi aquele Howard Hughes que quebrou
o recorde mundial de velocidade de um avião no ar e construiu um Hércules,
gigantesco hidroavião, com a maior envergadura na História, batendo mais um
recorde? Não foram aqueles jovens guerrilheiros do Araguaia e em tantos outros
lugares do país, lutando contra os grilhões generalescos? Não foi um louco
aquele que disse que a terra girava em torno do sol? Mas levaram a cabo suas
idéias. Lutero afirmou, por todos eles, em um dado momento da história, afirmou
pelos loucos de antes e pelos que viriam: “Aqui estou e aqui ficarei, porque
sou incapaz de agir de outra maneira”.
Talvez muitos ainda não compreendam a
magnitude da ação de Salomão Gadelha em prol do petróleo. O julgamento daquilo
que é uma grande realização e uma grande iniciativa é difícil de ser
inteiramente percebido e concebido como grande em seu tempo. Suetônio foi
considerado um historiador medíocre, porque não viu tudo. Nos dizeres de Carlos
Heitor Cony: “Ainda aqui, Suetônio não viu tudo. Impressionou-se com a grandeza
dos Césares, da Roma Imperial, e não teve o pressentimento que, em seu tempo,
em sua própria cidade, o mundo começava a mudar. Erro que, de resto, não foi só
seu. Até hoje muitos homens não compreendem que o mundo mudou”.
Afirmo que há muitos homens na Paraíba dispostos a continuar nesta peleja,
sejam agentes políticos, ou não. Eu mesma, e meu irmão, Lafayette, continuamos
engajados, como cidadãos, por ora, como povo - a força mais viva e mais
poderosa que há em nosso País, mas não é assim reconhecida.
Agora que as obras já estão iniciadas, a função primordial dos que
vestirem a farda de combatentes é garantir o petróleo permanente, na visão
acertada de Cristovam Buarque: “Mais ou menos quando o
ITA e o CTA começavam, o Brasil estava na campanha “O Petróleo é Nosso”. De lá
para cá, queimamos bilhões de barris que nunca voltarão, que roubamos das
gerações futuras. Hoje deveríamos dizer “o Petróleo é das Crianças”, porque ele
deveria ser usado para construir o Brasil do futuro, evitando a conhecida
maldição que o petróleo tem trazido a tantos países, que consomem suas reservas
e gastam seus recursos financiando despesas correntes voltadas para o presente.”
Peço, encarecidamente, que despertem o
interesse para este tema, que briguem por ele e que dele façam melhor uso
possível. Peço desta forma pela pessoa que não está mais aqui para fazê-lo. Que
não pediria por ele, porque não guerreou por ele, mas por todos os paraibanos.
Que unam forças, e estudem, e desenvolvam projetos. Que isto esteja acima do
interesse pessoal de cada um, porque no Festival do Petróleo, evento por meu
pai criado e que deveria estar sendo realizado agora, não fosse a tragédia que
agora me desola, foram convidados situação e oposição. Para debater, discutir,
honrando, assim, o mandato que lhes foi concedido, a imponência da democracia e
o respeito para com o seu povo.
A batalha não pertence somente aos mais
fortes, mas sim aos vigilantes, aos ativos, aos corajosos. Não temos escolha:
se formos tão baixos para querer nos retirar agora, já será tarde demais.
A Paraíba está mudando. O Brasil está
mudando. Vejamos que o nosso presidente saiu de classe baixa e, para não me
estender na notória revolução social que foi o seu governo, gerando, sobretudo,
mobilidade social e minoração da pobreza, falo que a maior revolução instaurada
foi primordialmente sua ascensão ao poder, alargando os sonhos dos brasileiros.
Da forma mais simples, digo: cada um de nós é dono do próprio destino e pode
alavancar-se para os pontos mais altos. Nosso Governador eleito foi também sindicalista
e é filho de pequeno agricultor. É a conferência mais alta que se pode dedicar
à auto-estima de um povo. É o fim do conformismo. Da concepção errônea e
incutida no imaginário popular por tantos anos de que Deus quer assim. Ou como
melhor explicou Ortega y Gasset: “Um povo renasce por si mesmo quando se sente
com uma nova vida, digna e alegre, onde todos têm sua missão”.
A última campanha de meu pai foi escassa de
recursos. Em cima de um tamborete, provocou justamente a reflexão de que não
precisa ser assim. De que o povo não é boiada, de que o voto é livre e é a arma mais forte que cada um possui
enquanto indivíduo político. Cantou Zé Ramalho: Porque gado, a gente marca,
tange, ferra, engorda e mata. Mas com gente é diferente. Exultou a verdadeira cidadania
e o fim do neocoronelismo.
Nasci em uma família de tradição política,
mas isso não informa necessariamente uma oligarquia, como certificam os
críticos. Há famílias repletas de médicos, mecânicos, advogados, artesãos,
costureiros, engenheiros. Isto não representa uma casta, mas antes o amor pelo
ofício que se escolhe, transmitido aos seus descendentes. Amo meu ofício, e não
quero que ele morra em mim – é apenas isso.
Em outra vertente, há políticos cujas
famílias nada têm a ver com tal emprego, mas, todavia, são muito mais adeptos
de práticas coronelistas e, assim, preocupados com seus próprios interesses do
que com as necessidades do povo. Fazem da política um balcão de negócios. Mas
isto está mudando. Encarecidamente, faço outro pedido: os que já têm espírito
público, mantenham-no, sejam firmes, ainda que vivendo entre feras, afastem de
si o desejo de também ser fera; os que não o tem, e por uma circunstancialidade
estão exercendo a representatividade, valorizem-na. Por ora, talvez o sistema
de compra de votos continue. Mas, com o tempo, vocês, que, tal qual disse
Belchior, amam o passado e não vêem que o novo sempre vem, compreenderão que se
não desenvolverem dentro de si a sensibilidade de olhar para o povo, não do
alto de um palanque ou do conforto de seus gabinetes, mas de perto, olho no
olho, com a justa sensibilidade, serão brevemente enxotados de onde nunca deveriam
ter chegado.
Estejam certos de que sim, tudo muda, e com toda
razão.
A filosofia do servilismo não nos foi, a nós,
filhos, lecionada apenas através das grandes obras erguidas, dos serviços
prestados e das lutas travadas – não que isso não fosse o bastante, já seria –
mas também através de pequenas lições diárias, como o ato de dar esmolas,
oferecer um prato de comida, abrigo para uma noite, aula antes das refeições,
porque nesse momento diziam: saibam, meus filhos, do privilégio da comida, do
pão de cada dia. Mas de nada resolveria ter dito, de nada adiantaria o pequeno
assistencialismo e a leveza das palavras, se não houvéssemos presenciado o
combate diuturno dos dois justamente por isso, pelo privilégio da comida.
Porque a fome é má companheira – diziam – assim, como podemos acusar de
bandidos e marginais os que furtam para comer? Não são bandidos e marginais os
que se omitem, os que vivem apenas para si, sobretudo aqueles que têm em mãos a
função precípua de agir? Os que não se doam? Porque, no Brasil, onde há
riquezas de recursos, fome, é genocídio, e não fatalidade da natureza.
Agora, sinto muita saudade. Saudade dos 21 anos que pude compartilhar ao
lado do meu pai e dos 17 ao lado da minha mãe. Mas sei que a vida, ainda que
curta, é tão cheia de acontecimentos e sentimentos que vão e vêm, que nós
perdemos a noção do tempo e às vezes achamos que certas coisas duraram uma
eternidade e que ainda não estão de fato terminadas. E não estão. Como as lutas que aqui expus, e
que pertencem a todos nós.
Mas mais que tudo, sinto saudade de dias mais criativos e alegres –
porque, para ele, todo dia era de fato uma grande novidade, uma recriação do
mundo; saudade do espírito audacioso e corajoso que não enxergo em mais
ninguém; do meu grande artista do impossível; saudade dos relatos tão bem
contados, sobre os mais diversos temas – revolução de 64 e sua participação na
luta estudantil, Sousa na década de 30 e nós dois criando bucólicas imagens de
tempos que não vivemos, divagações do tipo “Harry Potter, vilão ou herói?”
Porque ele viu comigo todos os filmes da série; saudade de procurar
ansiosamente a aparição sutil de Hitchcock nos filmes; saudade da proteção, do
afago, das noites em que tive febre e insônia e alguém que mais do que ninguém
tinha muito de médico e louco vinha me medicar; saudade do otimismo, da
confiança, da generosidade; saudade até mesmo do Twitter e do Facebook, onde eu
reclamava que ele perdia muito tempo; saudade de ouvir Sertaneja antes de
dormir; saudade do “Eu te amo, Infinito e Universo”, porque quem me dirá isso
novamente, com a mais absoluta sinceridade?
Como bem disse minha irmã Mirella a um desaforado jornalista, não acho
que os mortos têm foro privilegiado e viram santos. Meu pai tinha inúmeros
defeitos, como qualquer ser humano. Mas muitos de seus maiores defeitos vinham
a ser grandes qualidades, a partir de um determinado ponto de vista. Assim
segue ela: “Perdulário? Sim, sim. Seria capaz de
tirar a roupa do corpo para dar a alguém que pedisse. Não suportava ver o
sofrimento de ninguém. Tão bom, mas tão bom, que seria capaz de virar
seu amigo mesmo depois de tudo que foi dito. Um homem doce, meigo, amável,
incapaz de perseguir alguém. Um homem que me ensinou que devemos perdoar
as pessoas que falam mal da gente.” De fato, ele passava por um momento de
grande sofrimento, depois da morte da minha mãe e de diversas atribulações no
âmbito político, mas tenho certeza de que ninguém jamais falará dele como um
homem triste e sofrido. Este não era o meu pai, diz Mirella, ele era um
guerreiro. E, se é possível fazer
um balanço da vida, digo que ele foi extremamente feliz. Falaremos dele como
alguém alegre, divertido, envolvente, um amante e entusiasta da vida, no uso
mais efetivo que pode ser dado à expressão.
Parece que agora eu mesma terei que saber que devo voltar cedo para casa
e a quantidade certa de doses de uísque. Devo ter cuidado para não adormecer
com os óculos no rosto, porque ninguém aparecerá de madrugada para retirá-los,
com delicadeza, desligar o abajur e guardar o livro, deixando-o devidamente
marcado na página que me fez dormir. Preciso aprender a julgar as pessoas sozinha,
nunca esquecendo a lição, diversas vezes repetidas, de que há luz e trevas em
todos os seres humanos. E também a escolher minhas roupas e perguntar se estou
adequadamente vestida para ir para este ou aquele lugar, e se estou bonita. Talvez
eu necessite, vez por outra, cantarolar para mim mesma os versos de Carinhoso
e, assim, sentir-me um tanto menos só.
Sou adepta do aleatório, mas até os céticos, em momentos de desespero,
tem seus arroubos de fé. Muitas vezes pensei se não há um propósito na morte do
meu pai. E pensei num muito simples: ele simplesmente não conseguia viver sem
ela. Sem Aline. E, como acontece sempre que o futuro nos parece incerto e nos
amedronta, buscamos tudo que há de passado. Vasculhei caixas de fotos,
anotações, agendas. São pequenos confortos. Reminiscências das nossas vidas, às
vezes parecendo tão desimportantes, mas preciosidades, nestes momentos. Recebi
um sopro de vida ao achar, em um computador antigo, uma carta de amor de título
“Uma noite sem você”, de Salomão para Aline, quando os dois ainda estavam entre
nós. O pequeno trecho a seguir, talvez justifique um pouco meu momento de
crença, de que um sem o outro não poderia existir:
“Uma noite sem você parece durar a eternidade. Porque
as lembranças são incontáveis, uma atrás da outra, numa contabilidade tão
interminável quanto surpreendente. A diversidade de fatos é tão grande que
chega a assustar, mesmo a quem está se habituando a viver sem medo. (...) Uma noite sem você parece durar a eternidade. Quero
tirar a noite de uma “tapa só”, pra não acordar no meio dela e ver que estou
só. E quando isso acontece, as lembranças se multiplicam. E aí,
definitivamente, não encontro mais o sono. As recordações, que em nada combinam
com um “sono reparador”, vêm aos borbotões, assaltando a tranqüilidade de quem
precisa acordar cedo – porque tem “um leão pra engolir” todos os dias. (...)E fomos tocando a vida, até que a vida mostrou que ela
é que tocava nosso destino, levando-nos para o lado que DEUS nos reservou. Estamos felizes? EU ESTOU... COMO NUNCA!!! Porque amo e sei que sou amado, por alguém muito
especial. É difícil saber qual sensação é melhor: a de amar ou
de ser amado. Óbvio que a ausência de uma mata a outra. Mas, em amando
e sendo amado, é difícil distinguir o que é mais agradável. Uma noite sem você... vou enfrentar mais outra, hoje,
agora, com a saudade de quem ama com a impulsividade da paixão, e de quem é
apaixonado com a força do amor.”
Uma
noite sem eles parece durar uma eternidade. E, a verdade, é que, muitas vezes, a
vontade maior é de tirar a vida de “um
tapa só”, para não ser tomado de assalto no meio de um cotidiano conturbado e
vermos, nós quatro, eu, Lella, Lafa e Lilice, que estamos sós. Mas parece que é
a vida que toca o nosso destino e nos leva para o lado que Deus, ou o
aleatório, nos reserva. Uma noite sem eles. Um dia sem eles. Uma vida sem eles.
E vamos enfrentar uma inteira, hoje, agora, com toda a saudade sem fim de quem
ama, e de quem ainda se sente amado.
Aos
meus pais, não encontrei nada mais preciso para dizer neste momento senão a
dedicatória de Carl Sagan, em um de seus livros, a sua esposa Annie: Diante da vastidão do
universo e da imensidão do tempo, foi uma alegria para nós poder partilhar um
planeta e uma época com vocês.
À
Sousa, reiteramos: não somos órfãos, a cidade nos acolheu como família, da
mesma maneira como, um dia, foi acolhida pelos nossos pais. À Sousa, reiteramos: é o lugar para o qual
vivemos, são as nossas raízes, e quem não tem raízes, o vento leva. À Sousa, a
certeza e a garantia de que haverá sempre um tamborete à sua espera, a levantar
qualquer um que deseje firmar-se contra aqueles que querem o poder apenas pelo
poder, com amor e coragem, sem ódio e sem medo. À Sousa, a nossa eterna
gratidão.
M.