Perto do Natal e
eu estranhei minha tristeza. Natal é sempre pra ficar feliz. Lembro-me bem, há
uns quatro anos atrás, mamãe vivia me dizendo: “Myriam, você precisa ser mais
séria.” Aliás, todos viviam me dizendo. Eu era dona de uma leveza
incontestável, que parecia incurável. Uma fogueira da infância, nunca
terminava. Hoje, entre as mais diversas recomendações, eu escuto da minha irmã
mais velha: “Minha flor, amoleça seu coração. Tire esse peso de você” .
A realidade é
que sim, eu ando pesada, nas mais diversas acepções da palavra. Lembrei do
Natal de 3 anos atrás, eu e mamãe indo comprar presentes para todo mundo,
Camboinha fervilhando de gente, uma brisa com cheiro de maresia era suficiente
pra me deixar contente por toda a tarde.
Mas um
pré-requisito da leveza é que a gente não deve viver de passado. Que devemos
aprender a gostar do presente, ainda que o passado nos pareça melhor. Venho
tentando esquecer, não olhar as fotos, não remexer os papéis, ler cartas
antigas, mas a minha atração pelo que é velho é inata. A história é fundamental
na minha vida. A minha, a dos grandes heróis e a dos que não deixaram nada para
os livros que não uma parte mínima do movimento da massa, do curso de todos, da
idéia geral de uma época, da moda. Aqueles que me dão arrepio quando lembro: os
anônimos, os que restringiram sua imortalidade aos seus filhos. Não que isso me
pareça medíocre, infeliz, sem graça. Muitas vidas felizes podem ter sido
vividas dessa maneira. Longe dos holofotes, mas no âmago de um lar aconchegante
e de um cotidiano tranqüilo, ou mesmo num grande tumulto, num duelo constante
com a vida diária, consigo próprio, com seu universo particular, mas no fim de
tudo, uma vida feliz.
Marília, comecei
a escrever-te antes do Natal. Hoje já é dia dois de janeiro e só agora
recomeço. Até minhas cartas ficam facilmente incompletas. Qualquer estalo de
melancolia ou alegria mais efusivo do que o habitual me tiram do foco, do que
realmente queria contar. Por um milagre, hoje estava me sentindo tal como no
dia em que comecei a escrever esta carta. Milagre, sim, pois, para mim, é muito
rara a repetição contínua de sentimentos, de pensamentos, de idéias. Minha
filosofia toda muda velozmente da noite para o dia, da água para o vinho. Vivo
entre uma crise existencial dos diabos unida à hipocondria desestabilizadora e
um estado de alegria efusiva, de amor incondicional, amplo, infinito, pela vida
e por toda a humanidade. Após esses momentos otimistas de contentamento e
compaixão, de exaltação da contemplação da natureza, do bom e do belo e,
obviamente, do cumprimento desses ideais, segue-se uma tristeza profunda, um
vício melancólico, que é quando eu assumo a postura mais ranzinza e cética
possível.
Tenho uma
necessidade de ser justa, gentil e amável com todos os seres vivos. Essa idéia
dos seres vivos me surgiu recentemente, Deus foi embora de minha vida, uma
perda terrível, se você quer saber. Não posso afirmar ainda com certeza se Ele
partiu de vez, pois já falei de minha natureza volúvel, do meu pensamento
exageradamente fluido. Eu careço de pragmatismo. Prescindo de sentimentalismo e
de abstração. Meu Deus era barbudo, sim, velhinho. Não posso dizer
verdadeiramente que O amava, mesmo quando cria piamente em sua existência. Mas
tinha medo e ainda tenho. Deixei o colégio de freiras, as irmãs e seu
medievalismo, mas eles nunca me deixaram. Os conceitos rígidos de temor ao
Senhor, da certeza do seu castigo quando Ele dizia ser preciso ainda estão no
meu coração tanto quanto o temor da morte, do nada que talvez exista.
Marília, acho
que a vida após a morte, da forma que nos contaram, não existe. Mas talvez,
daqui a muitos e muitos anos, eu poderei ser uma flor, um passarinho, uma
criatura totalmente nova que venha a surgir na face da terra. Perguntarei a
algum biólogo quais as chances do pó do meu corpo poder dar origem à outra
vida, a pelo menos um simples organismo unicelular, mas que pulsa no emaranhado
lindo, brilhante, vivo deste mundo. O mundo é, sobretudo, vivo. Através de
todos os seres, de todo o movimento, de toda a luz. Isso é Deus para mim neste
momento. E sinto um medo tremendo de ser castigada por duvidar de sua
existência, como dizia irmã Paula, que Deus nos fez à sua imagem e semelhança,
que Deus é um ser que tem algo de humano. Que nós temos algo, muito, na realidade,
de Deus em nós, sem dúvida. Mas por que Deus, em alguns trechos da bíblia, tem
um caráter tão humano? Por que Deus me faz ter vontade de apagar tudo que
escrevi por temer o seu castigo, por que Deus não abre espaço para a dúvida?
Sei que a
religião é de fundamental importância para muita gente e que há o argumento de
que o ateísmo não serve para nada, que ele nada constrói, nos deixa a mercê do
vazio, do nada. Mas também a religião muitas vezes não já infligiu à humanidade
tanta dor, física e psicológica, não já submeteu tantos espíritos à
perturbação? Agora mesmo, a religião sob cuja égide tenho vivido, não torna
minha alma vacilante? Talvez o ateísmo não nos leve à paz, mas tampouco a
religião nos dá segurança de que podemos alcançar a plenitude. E não é isso
que, afinal, procuram todos os seres? Mais uma vez quero apagar o que escrevi,
pois o Deus onipresente, onisciente já sabe que duvido dele, me castigará? Não,
não duvido desse Deus, pois, sendo a vida tão cheia de desencontros e
dissabores, qualquer coisa poderia eu apontar como o castigo pela minha dúvida.
E ainda os que seguem com fé também passarão por momentos amargos. Qual será a
diferença? O Senhor estará com eles.
Digo-te,
Marília: detesto a descortesia, a indiferença, a falta de amor, o apego, a
falta de calor, de cordialidade, a maldade propriamente dita, a covardia,
também, pois li, recentemente, que a bondade não deve ser uma virtude passiva,
que não faz o mal somente. A bondade é ativa, é corajosa. Será a covardia uma
maneira alternativa de ser mau? Creio que sim. Bem como a indiferença. Não
tenho sido das mais corajosas, muito menos das mais ativistas que lutam pela
bondade e igualdade. Estou distante do que considero justo em função das duas
mãos que me foram concedidas para trabalhar na obra de Deus. O Deus no qual
creio é um amor mútuo entre os homens. Será o bastante, Marília, ou preciso ter
uma fé inabalável no Senhor velhinho, de barba, com Jesus ao seu lado, que
separa estritamente o bom do mau, que condena os infiéis à eternidade do
inferno? Será que não é suficiente alimentar a minha fé inabalável no amor, na
compaixão, num sentimento profundo de compreensão dos seres humanos, de todos
os seres, compaixão e compreensão pela natureza, pelo ritmo da vida, compaixão
em relação ao sofrimento e ao êxito do outro, pois já disse Oscar Wilde que a
forma mais pura de solidariedade é no momento da vitória. É quando alegramo-nos
verdadeiramente com o sucesso do próximo, e não somente quando nos prestamos a
estar com eles nos momentos de fracasso e dor. Pois muitas vezes (se achar esse
pensamento por demais egoísta e feio, perdoa-me e corrige-me) assistir à dor do
outro é contemplar nossa própria felicidade, nos regozijarmos com nosso
contentamento através de uma sórdida e cruel comparação, sentir gratidão por
não estarmos ali, na pele do que agoniza.
Será que Deus me
punirá por não ter conseguido enxergar nitidamente Sua onipresença, Seus
sinais, sua bondade explícita? Vejo pequenas coisas, sinais, nada comprovado,
nada ‘cientifico’. Talvez eu procure em vão. Talvez Deus seja mesmo mágico,
invisível, as vezes isso me parece absurdo, ainda que lindo, uma idéia sublime,
mas absurda diante das injustiças do mundo. Belo demais que haja uma outra vida
perfeita, cheia de luz. Não estou certa, Marília, meu espírito vê embaçado.
Vou rezar agora
à noite, sabe. Meditar, o que seja. Tentar entrar em contato com algo que não
seja apenas meu corpo. Eu era tão certa da existência do espírito não material.
Mas agora entendo que sou toda corporal, sou toda em cada ínfimo átomo meu, sou
toda nas minhas coxas, no meu colo, no meu suor, no meu temor, na minha
sinusite. E essa engrenagem corporal, essa certeza de que todas as potências
estão tão somente nessa minha carne impedem-me de conectar-me com qualquer Supremo,
qualquer energia, qualquer natureza. Sinto-me incapaz, quando penso que meu
desejo de espiritualidade não vai muito além das minhas sinapses.
Não estou com
aquela vontade louca de escrever, apesar de ter passado o dia lendo Clarice
Lispector. Achei uma pergunta bonita nela: ``Como será a primeira primavera
depois que eu morrer?``. Mas esta tarde tive um certo enjôo dela nesse livro ,
Um sopro de vida. Porque ela fala dela o tempo inteiro, de um jeito lindo,
claro. Mas eu gosto mais quando o escritor se mete no sentimento e na vida dos
outros, explorando suas dores e alegrias, explicando-as, detalhando-as ,
fazendo o leitor sentir-se o personagem. O romance e a leitura devem servir
como uma forma de compreensão do outro, de descrição das outras vidas.
Colocar-se no lugar do outro e ainda por cima descrever. Claro, é um mérito enorme falar de si com destreza, de
tal forma que o leitor sinta-se o autor e possa compreendê-lo. Mas ainda acho
que o desenvolvimento de um ser diferente de si implica num esforço e numa
sensibilidade muito maiores.
Por fim, quero dizer a
você, Marilia, que eu vejo beleza sempre,em qualquer lugar mas que, para mim, o
ano fica muito mais bonito a partir de setembro. E que agosto é mesmo o mês do
desgosto até que se prove o contrário.
Espero que esta
carta não esteja por demais tediosa. Você pode demorar pra ler o tanto que eu
demorei pra escrever.
Quero que você
me conte sobre o seu estágio, sua vida, amores, etc. Você fala muito pouco de
você e eu sou uma espalhada nas cartas. É culpa minha, esse seu silêncio maior?
Imenso carinho,
M.